A Mary Wigman de Fabián Barba

No dia 27 de maio, o terceiro Encontro Científico da Associação Nacional dos Pesquisadores em Dança (ANDA), realizada entre os dias 26 e 29 de maio pelo curso de Dança da Universidade Federal da Bahia, trouxe pela primeira vez ao Brasil o espetáculo “A Mary Wigman Dance Evening” (2009), criado e interpretado pelo artista equatoriano Fabián Barba.

No palco, Barba apresenta oito solos criados pela artista expressionista alemã Mary Wigman (1886-1973): Figura cerimonial (Zeremonielle Gestalt), de 1925; Figura no espaço (Raumgestalt), de 1928; Canção seráfica (Seraphisches Lied); O rosto da noite (Gesicht der Nacht); Pastoral (Pastorale); Invocação (Anruf); Canção da tempestade (Sturmlied); e Dança do verão (Sommerlicher Tanz), esses últimos de 1929.

Esse foi o primeiro espetáculo que Barba criou depois de se graduar em dança na Performing Arts Research and Training Studios (P.A.R.T.S), sediada em Bruxelas, Bélgica. Não sabia que “Mary Wigman…” teria a repercussão que teve: “Foi uma surpresa e também muita sorte. Estreei em um congresso de dança que aconteceu em Hamburgo, na Alemanha, em 2009, e muita gente assistiu naquele momento.”, diz ele. Por conta disso, foi convidado a se apresentar em diversos lugares como Índia, Nova Delhí, Nova York, Quito, Salvador, Bélgica, França, Alemanha, Suíça, e outros países. Para o segundo semestre, estão previstas apresentações em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Será que era assim?
“A Mary Wigman Dance Evening” começa antes mesmo da cortina se abrir. A plateia foi recebida no Teatro Castro Alves, em Salvador, com luzes baixas e gravação de música orquestrada de fundo, mesma ambientação criada para os intervalos entre cada um dos oitos solos curtos.

“Será que era assim?” é a pergunta que acompanha o espectador do início ao fim do espetáculo. “Em referência aos candelabros antigos, tento teatralizar o espaço do público para que fique imerso em pensamentos sobre como aconteceu aquela apresentação nos anos 1920”, explica o artista.

O espetáculo promove uma experiência muito distinta da de assistir ao registro em vídeo de coreografias dançadas por Mary Wigman. Evoca algo que não está ali e nunca poderá ser acessado exatamente como foi. E é na tensão entre a evocação de um passado na impossibilidade de acessá-lo, que o espetáculo convida o espectador a criar, a imaginar por meio de uma aproximação como tudo aquilo aconteceu. Uma evocação feita por um homem a danças que foram performadas por uma forte mulher.

Em Salvador, Barba concedeu entrevista ao idanca.net, e explicou um pouco mais sobre por quais caminhos sua pesquisa de criação percorreu.

O que te levou a reencenar solos de Mary Wigman?
Comecei minha pesquisa assistindo a três solos registrados em vídeo, em que se pode ver Mary Wigman dançando. Minha inquietação era: como mostrar esses solos para meus colegas da P.A.R.T.S? Como levar uma dança de um contexto a outro? Apesar dos alunos terem estranhado as danças, muita gente se interessou por elas. Eu não sabia que havia grande interesse pela obra de Mary Wigman quando comecei a pesquisar isso. Então, conversando com mais pessoas pensei que poderia trabalhar em mais danças para criar uma obra inteira, porque assim como as outras, os solos tinham poucos minutos.

Comecei a fazer uma investigação para encontrar material sobre outras danças, dispendi bastante tempo nessa busca. Encontrei, sobretudo, fotografias, textos que Wigman escreveu sobre seus próprios trabalhos, ideias de composição e artigos escritos por críticos de dança da época, publicados em jornais. Com esse material consegui ter, de certa maneira, uma ideia de como era cada solo. Mas saber como eram, exatamente, é impossível. É possível ter uma ideia do que pode ter sido, mas nunca do que foi.

Com essa dificuldade, me encontrei com três ex-alunas de Wigman: Susanne Linke, Katharine Sehnert e Irene Sieben. Elas estudaram com Wigman nos anos 1960, em Berlim. Ela não criou um vocabulário de dança como Graham fez. Criou uma técnica, que ela denominava de “princípios de movimento”. Essas três ex-alunas me ensinaram exercícios que conheciam que são incríveis, porque é uma maneira de treinar o corpo e produzir movimento com certos princípios. Quando elas me ensinaram, consegui produzir movimento quase inventado, mas que de certa maneira pertenciam ao universo de Wigman. Então, com as informações que tinha de cada solo, criei novas danças.
Linke, Sehnert e Sieben me ajudaram a compor alguns dos solos, porque elas também tiveram aulas de composição com Wigman e conhecem o trabalho dela como ninguém. Fui entendendo, portanto, a lógica das danças e, pouco a pouco, consegui criar os nove solos que compõem o espetáculo.

Assistindo ao espetáculo, fiquei particularmente intrigada com a ocupação e criação de espaços. Você encontrou estudos de Wigman sobre isso especificamente?
Wigman fazia desenhos de seu deslocamento pelo espaço. São desenhos muito bonitos, que utilizam círculos, diagonais, espirais e linhas retas. Não existem registros desses desenhos para todas as danças, apenas para algumas. Por meio deles se pode ver como se movem pelo espaço e como há uma lógica nisso. Quando estava criando as danças, tinha os desenhos em mente. Comecei a fazer desenhos para criar relações com o espaço que, de certa maneira, pudessem equiparar-se com os desenhos que havia visto.

As músicas são originais?
Mais ou menos (risos). Usei as músicas dos solos que estão registrados em vídeo. Encontrei a partitura musical de três danças, que os músicos puderam tocar novamente. Mas havia três solos mais para os quais não encontrei a música. Um deles, opto por fazer em silêncio, que é “O rosto da noite”, já que ela fazia danças em silêncio, o que para sua época era recebido como grande inovação. Por isso queria que, pelo menos uma dança fosse realizada em silêncio e “Rosto da noite” era a que me parecia mais apropriada e que mais necessitava de silêncio. Para as outras duas, criei primeiro as danças e convidei músicos que leram as partituras e puderam saber qual era a estrutura da música e que instrumentos Wigman utilizou. Com isso, puderam criar músicas novas.

Wigman sempre tinha músicos ao vivo e cada um de seus solos é dançado com um vestido diferente. Tentei saber como ela fazia para trocar de vestido de uma dança para outra, mas não encontrei informação sobre isso. Depois, uma das ex-alunas me disse que como os músicos estavam presentes, muito possivelmente eles improvisavam ao público. Não tenho provas de que era feito assim, mas acabou se tornando uma estratégia para realizar intervalos entre uma dança e outra.

Para os movimentos não havia partitura, né?
Não. Há notações Laban, mas não investiguei isso. O estranho é que a maioria das danças que faço foram criadas nos anos 1920 e as notações Laban foram feitas nos anos 1940, 1950. Não sei como chegaram a fazer essa notação. Teria que investigar.

Como foi dançar uma obra com tamanha força feminina?
O fato de ter sido dançada por uma mulher, por um corpo feminino ficou fora de minha reflexão. O que me interessava era, sobretudo, os movimentos, os gestos. E, claro, os gestos e movimentos são lidos como femininos, mas essa leitura de gênero ficou de lado para mim. Só depois que me dei conta (risos). Não sabia que ia usar os vestidos no início, mas acabei optando por usá-los e fazer o cabelo do jeito como ela usava para trazer sua imagem às três dimensões. Ao final, o trabalho tinha a ver, sobretudo, com as qualidades de movimento das danças.