Carta aberta: a dança discutida à distância
À pesquisadora, amiga e doutora Nirvana Marinho. À bailarina, coreógrafa, estudante, modèle vivant, professora de português em Paris e babá parisiense do Henrique, Fabrícia Martins. Este artigo reúne as cartas que trocamos, eu e Fabrícia, durante 7 meses, motivadas pelo encontro no colóquio internacional Repenser pratique et théorie, sobre o qual houve um artigo neste site de Paulo Paixão. A Fabrícia, obrigada pelos sinceros e ousados apontamentos. Estas trocas apontam para reflexões de modos de produção de conhecimento em dança hoje.
Paris, 24 de junho de 2007. Querida Nirvana, depois que me despedi de você e do querido Henrique na estação Stanlingrad, não pude deixar de pensar sobre o que falar, sobre como exprimir minhas impressões a respeito desse grande marché da teorização e da prática – internacional – em (da) dança. Essa experiência causou muitas surpresas ao meu entendimento como, por exemplo, a surpresa de descobrir que, tanto conferencistas como mediadores ou participantes estavam sujeitos ao pagamento da taxa de participação/adesão aos mecanismos/instituições promotores do evento: o CORD (1) (Congress on Research in Dance) e o SDHS (Society of Dance History Scholars) (2); e que esse evento fechava as portas do CND (Centre National de la Danse) (3) ao público normal durante esses três dias de colóquio, ou seja, a todos aqueles não inscritos no evento.
Inútil discutir a necessidade e a importância de fazer com que pesquisadores se encontrem, uns ouçam as pesquisas dos outros, perguntem, tenham a oportunidade de elaborar respostas, demonstrar procedimentos, descobrir novas dúvidas e desconfiar de certezas. Duro é saber que, para tomar parte neste “saber”, todos pagaram, independentemente de serem conferencistas, ouvintes ou moderadores, e que a “difusão” desse “saber” se deu dentro de um espaço público, por esta ocasião, privatizado. É ver as ações todas enquadradas em uma mesma forma e tempo: 20 minutos para cada conferencista (sem risco de extrapolar o tempo pois há alguém encarregado de avisar sobre o horário àquele que fala).
São Paulo, 9 de julho de 2007. Querida Fabrícia, muitos dos pontos sobre os quais você fala me interessam repensar. Muitos coreógrafos, legitimados por instituições como esta – CND – me ensinaram a pensar politicamente a dança, e também muitos artistas, como você, me proporcionam a chance de exercer um “gesto político” além dos meus 20 minutos. Tal “grande marché da teorização e da prática – internacional – em (da) dança”, é patente. No entanto, quando o marchê da teoria legitima seus discursos por práticas colonizadoras me preocupa. Temos uma espécie de ideas fashion que merece cuidado e senso crítico quando deslocado dos seus contextos, seja CND, CORD, SDHS ou o que convier.
Deslocamentos e apropriações são temas que subvertem a coisa – sujeito que apropria ou objeto deslocado do seu contexto – ao mesmo tempo que define as instituições tutelares. Do meu lado, me preocupa como disseminar a informação. Dupla responsabilidade, trazer conteúdos, informações, comentários, críticas ao meu contexto me dão frio na espinha. Como fazê-lo sem repetir o modelo da instituição vendedora?
E, Fabrícia, quantas são as práticas privatizadas em dança? Ou como lidar com a inevitável existência delas? Sobretudo quando elas nos definem?
Paris, 17 de julho de 2007. Querida Nirvana, muitos dias têm se passado desde a sua carta-resposta e não encontro a ocasião para me sentar e te escrever. Sabe, tomo esse nosso propósito muito a sério. E assim, nessa seriedade sem ocasião, o assunto ou os vários assuntos que essa nossa conversa estendida no tempo e no espaço suscitam não ficam longe e nem se ausentam dos meus pensamentos. E sua presença vaporosa vai fazendo parte dos meus dias, onde te comento feitos, descobertas, pensamentos.
Quando chamo a atenção para um congresso pago, e caro, Nirvana, como é o caso desse congresso que desatou nosso diálogo, o Colloque International Repenser pratique et théorie, o faço pelo seguinte: 1) a dança já é uma expressão artística por demais frágil, seu suporte não é outro senão o corpo que dança enquanto ele está exatamente ali, no exercício de cumprir o próprio traço da dança, traço esse que se apaga no instante mesmo em que se inscreve. 2) dito isso, me parece um pouco um atropelamento das coisas ter num congresso, ou num colóquio sobre dança, as mesmas leis ou dinâmicas (taxas etc) de congressos outros, de mercadorias outras, ou de produtos de linguagens outras. 3) então, o que fica para mim nisso tudo é que a singularidade mesma da qual a dança é feita fica negligenciada, e daí o “perigo” quando as especulações chegam de igual para igual e quando, na verdade, não é possível ter com a dança, ou com tudo que se aproxima du spectacle vivant, o mesmo tipo de abordagem ou tratamento de congressos universitários, onde o pagamento de taxas de adesão é uma prática normal. 4) vendo as coisas dessa maneira, e sobre as práticas de colonização na dança, fico com um sentimento de estar vendo as coisas serem roubadas, a prática da dança sendo saqueada por aqueles que vão colocá-la num envelope de erudição, teorias e tratados sociológicos e desapropriando-a do corpo que a suporta. 5) como falar de se repensar prática e teoria quando a voz do praticante é suprimida? – oh, parece um pouco dramático falar assim, não?
Meu problema não é com a universidade. Meu problema é com as iniciativas que tentam deixar as coisas nos seus devidos lugares: pesquisador é pesquisador, crítico é crítico, professor é professor e o bailarino é aquele que fala por último, pois em relação à fala dele é preciso primeiro que ela seja problematizada pela academia! E dá-lhe controvérsia para problematizar, então, o corpo na universidade. Ok, talvez aqui eu esteja somente tateando o sintoma, ou um dos sintomas, desse fenômeno relativamente recente (!) da teoria da dança em larga escala.
Outro dia, para poder defender meu projeto, fiz uma lista de obras nas quais é latente um discurso, de forma literal ou não, que aparece para simbolizar ali na partilha do sensível que um dispositivo cênico é. O intérprete enquanto sujeito. O discurso se complexifica. Estudamos mais pra poder falar das coisas. Seria essa uma forma de gerenciar os novos desafios?
Há, contudo, a outra questão que gostaria de tocar: essa preocupação com o déficit de exportação. Aqui falo de um quase sentimento de desvalor que parece ser uma pulguinha atrás da orelha do inconsciente do brasileiro quando este é colocado em confrontação com as coisas vindas de fora. Por um lado, podemos constatar uma quase admiração absoluta por tudo que vem de fora – lógica essa muito bem ancorada no processo de colonização, onde o “dono” é o estrangeiro. Por outro lado, acho um pouco tributário dessa mesma lógica todo sentimento nacionalista que exalta uma certa fidelidade ao produto interno bruto ou bem acabado.
Meus amigos muitas vezes me questionam, e você mesma o fez (mas não levo tão a sério assim! Risos) sobre exatamente a escolha de vir pra cá, sobre se eu tenho planos de logo voltar ao Brasil para finalmente quitar um certo “débito” repassando a informação adquirida… Ora, não estaria aí, já na formulação de questões como esta, uma certa semente da idéia de que é preciso vir comer fora pra depois ir vomitar no Brasil? Desculpa pelo linguajar quase escatológico. E o contrário disso me enjoa também, pois acho já muito tarde para se falar de raízes hoje, quando já entendemos que toda formulação do que seja identidade no Brasil só foi elaborada pra atender demandas de mercado.
São Paulo, 20 de agosto de 2007. Querida Fabrícia, igualmente começo minha segunda carta-resposta entusiasmada com nossa iniciativa de trocar idéias e cartas, mas lamentando não ter feito antes; meu atraso ainda maior se resume a um bebê de 8 meses lindo, que aprendeu a engatinhar e comer este último mês. Só faltou mesmo aprender a dormir a noite inteira… Mas, como ele é mesmo lindo, na próxima carta já lhe darei esta notícia: estou dormindo uma noite inteira, ele também.
Quanto ao contexto da dança do qual estamos falamos – do congresso – chama-me atenção seu 1º ponto, uma certa efemeridade da dança. Sim, a dança acontece no corpo – tem sua ocasião – bem como acontece como um traço, mas também permanece, e por isso podemos falar dela. Por esta premissa, ainda que vulnerável, não vejo problema em saber que as mesmas leis de outras linguagens ou ocasiões se aplicam em um congresso da área; não é porque ela é efêmera ou corporificada que mereça outro tratamento. Vejo problema, sim, quando tais congressos funcionam sob determinadas condições não desejáveis, como a elitização ou o mercantilismo do conhecimento, comum não somente à dança, mas ao modo de produzir conhecimento. Isso deve mesmo ser reconsiderado e refletido. Não pretendo lutar contra a prática comum de cobrar as inscrições em congressos, e sim, questionar como o conhecimento vem sendo desenvolvido em contextos como estes em que nos debruçamos.
Sim, no seu ponto 4, minha concordância é absoluta. Em tais práticas mercantilistas, colonialistas, liberais ou mesmo tacitamente autoritárias, conhecimento é roubado, saqueado entre nós mesmos, como cegos do livro de Saramago que, contagiosos, passam cegueira irrestrita por devoção e falta de acesso à informação. De fato, merecemos novas fôrmas, onde devem caber formas mais dinâmicas, fluidas de produzir conhecimento.
Venho pensando cada vez mais nas “cópias interrogadas do modelo”, de Rancière.
Quanto à voz do praticante, do dançarino, da prática, tenho uma posição diferente: acho que não a suprimimos, mas ela se faz suprimir por sua falta de hábito em se colocar. Muitas vezes em que me vejo com artistas da dança e nos indagamos, perguntamos, e não temos proposições, mas esbravejamos as lacunas. Nossa geração: doce e amargo desafio da teoria-prática. Que tal pensarmos o que antropofagizamos deste congresso? Façamos críticas antropofágicas.
Paris, 12 de setembro de 2007. Oi, querida Nirvana! Você já está dormindo as noites inteiras? E Henrique? Eu não posso ter um filho agora, arrumei um gato (risos). Chama-se Hélio Oiticica e é lindo.
Em certa ocasião, coreógrafo bem conhecido afirmou: “O artista não fala, não levanta bandeira, mas o trabalho está lá, operando no mundo”. Seria essa capacidade de misturar as instâncias de poder e de saber, o que faz de uma obra contemporânea? Ou essa mistura é inerente a tudo o que é digno do nome obra de arte?
Pensar dança num contexto acadêmico não frutificará necessariamente; não tornará o produto dança mais pensado/elaborado no contexto da prática. Aliás, a experiência nos mostra que muitos dentre os que fazem uma dança questionadora não estão lá assim tão implicados em contextos de pensamento acadêmico. Assim como há também certos acadêmicos que extrapolam, exatamente, os limites da universidade. Acho que temos aí um verdadeiro, e não menor, problema!
Sim, o que perpetuamos, o que estamos autorizados a perpetuar em corpos ou contextos outros, o que somos convidados (senão obrigados) a ver perpetuar é um sintoma valiosíssimo dos valores e crenças da nossa época. Assim como o contrário também, aquilo que não queremos que se repita, que não encontra espaço de expressão, seja onde for, é também um índice que conta em que capítulo da História estamos.
E diante de tanta (pseudo)arbitrariedade, me pergunto em qual ideologia apostamos.
São Paulo, 3 de janeiro de 2008. Queridíssima Fabrícia, versão janeiro de 2008, entramos em um novo ano! Sim, comecei o ano dormindo noites inteiras. Henrique, lindo, fez 1 ano e continua firme na sua beleza e plenitude. Adoro seu gato desde já, o nome escolhido é lindo, tomara que apronte muito com diversos parangolés.
Recomeço o debate respondendo: penso que sim, os fatos e obras artísticos a que assistimos, e/ou expomos, operam de modo cada vez mais correlato entre a estética e a política, ainda que nós, artistas, tentemos nos esquivar do mundo contemporâneo a que estamos imersos e aos contextos que nos atravessam e nos definem, inclusive a dança que fazemos. Seja por escolha ou discurso, todo aquele que faz tem direito à opinião, igualmente aquele que vê e reflete. Não se trata da verdade, mas das escolhas.
Ranciére diz que o princípio que converge a filosofia e a política está em desentendimento, ou seja, ao mesmo tempo se entende e não se entende o que dizemos um ao outro quando afirmamos, por exemplo, o que é dança ou a qual dança nos referimos. Distinções fazem parte deste conflito, ou seja, tipos de dança geram conflitos que fazem parte. Ele afirma assim: “Os casos de desentendimento são aqueles em que a disputa sobre o que quer dizer falar constitui a própria racionalidade da situação da palavra”. Encaixa-se bem no nosso caso, não?
A dança tem várias danças, realmente não dá mesmo para falar em dança com D maiúsculo. E ainda com Ranciére, ele nos adverte que tal desentendimento não é só da ordem das palavras, mas também de quem diz o quê. E esta situação em que quem diz o que e em qual contexto diz respeito à política, que é responsável inexoravelmente pela justiça de partilha dos bens, sensíveis ou concretos, bens estes que fazemos, pensamos ou produzimos, dentro e fora de cena.
O fato da dança ser pensada, inclusive na universidade, não faz dela nada mais do que ela mesma?
Mora na circunstância a tal danada singularidade da dança. E quem me respondeu isso, ironicamente, foi o coreógrafo que motivou este nosso último ponto de debate. E também o Hélio, não seu gato, o outro, e também outros artistas e filósofos que dão conta de nos explicar como operam as idéias no mundo.
Beijos com muito amor e luxo para 2008,
Nirvana
(1) O CORD (www.cordance.org) é um organismo de fomento à pesquisa em vários aspectos. Estimula a troca de idéias, de fontes e metodologias pelo viés de publicações, conferências locais e internacionais e estágios. Concede prêmios a trabalhos de pesquisa pioneiros e ou que se configurem como contribuições importantes e relevantes para a dança.
(2) A SDHS (www.sdhs.org) é uma estrutura de fomento no campo de estudos sobre a dança através de trabalhos de pesquuisa, publicações, espetáculos e trabalho de sensibilização dirigido ao público que se interessa pelas artes, literatura e ciências humanas. Organiza diversos congressos anuais, publica pesquisas recentes e dentre outras é responsável pelo prêmio Torre Bueno Prize®.
(3) Centre National de la Danse – CND – é um estabelecimento público sob tutela do Ministère de la Culture et de la Communication Française, que intervém no âmbito da pedagogia, da criação e da difusão em dança.