Corporeidade e Martha Graham: novos olhares sobre o corpo
Vivendo Corpo
A maneira como o corpo é percebido, definido, sentido se altera constantemente através da história, evidenciando, no decorrer do tempo, formas de pensar e conceber características de um momento, de uma cultura, de uma sociedade. O corpo por meio de seus gestos, sua espontaneidade, sua vitalidade; revela a maneira como um povo se comporta, se relaciona ou se expressa. Toda a história de vida de uma pessoa se registra em seu corpo, tatuando-o, marcando a pele, definindo a postura, estabelecendo a maneira de se mover. O corpo é, antes de mais nada, a nossa própria existência e através dele percebemos e fazemos parte do mundo. Podemos compreender a dialética entre o corpo e o mundo através da fenomenologia; segundo Merleau Ponty (1994) o corpo é nosso ponto de vista sobre o mundo, bem como um dos objetos deste mundo, desta forma o corpo sujeito objeto modifica a cultura e o momento em que vive, bem como sofre alterações em conseqüência ao contexto em que vive. Movimento é sempre vida, renascendo e morrendo a cada instante. Através do corpo, em sua existencialidade motora modificamos e somos modificados, marcamos e somos marcados. “…/ Realizar um movimento corporal é visar às coisas do mundo por meio do corpo, sem o intermédio de nenhuma representação” (Gonçalves,1994,p.67).
Os corpos que podemos apreender da realidade característicos de um momento cartesiano em termos de paradigma, mostram-se marcados como objetos que podem ser adestrados, que podem ultrapassar limites, realizar tarefas. Corpos muitas vezes dissociados da pessoa humana, do Ser humano (pois, numa medida bem concreta, Somos nossos corpos). Estes corpos dóceis e úteis pagam alto preço pela fragmentação, perdendo conscientemente sua integração com o mundo.
Se somos corpos, porque não nos levantarmos em direção ao mundo através destes?! Corpos integrados à alma, ao pensamento, ao sentimento. Ao invés de utilizar, ser. Ao invés de disciplinar, cultivar. E para isso, segundo Moreira (1999), o estado estético, o impulso do sensível, livre de coerções, é o mais adequado para cultuar e cultivar a corporeidade.
Desenvolvemos, ao longo de nossa pesquisa de mestrado, realizada no Instituto de Artes da Unicamp de 1998 a 2000, com o financiamento da Fapesp e sob a orientação da Profa. Dra. Sylvia Mônica Allende Serra, um trabalho corporal de preparação do intérprete baseado na respiração (e na técnica de Martha Graham), buscando as relações desta com a expressividade artística. Neste trabalho pudemos perceber o poder de integração da respiração através de uma técnica fundamentada nesta ação vital. Esta abordagem corporal converge aos questionamentos colocados a respeito de um cultivo da corporeidade integrada a si e ao meio. Um corpo, antes de tudo, Ser, Existência, Vida, de forma alguma separado da individualidade humana que o constitui. Propomos assim neste artigo uma reflexão a respeito do corpo na técnica de Martha Graham. Nesta reflexão enfatizamos o tratamento do corpo numa técnica que converge na busca de um paradigma holístico, sistêmico. Primeiramente, o objetivo é evidenciar a progressiva alteração na concepção e tratamento do corpo do balé romântico até o surgimento da dança moderna, voltando o foco de análise à técnica de Martha Graham por suas possibilidades de integração corporal.
Pés no chão
Na Dança e nas técnicas de dança desenvolvidas através da história podemos verificar mudanças no tratamento e no desenvolvimento do corpo para a expressão artística. E aqui faremos uma breve contextualização a respeito do balé clássico romântico para tratar, especificamente, de uma técnica de dança moderna: a técnica de Martha Graham.
O balé romântico anterior à dança moderna é caracterizado por Garaudy (1973) como uma linguagem morta a medida em que supervaloriza o decorativo , desumanizando seus protagonistas entre elfos e rainhas mortas, fadas e fantasmas embalsamados em caixões de vidro. Gestos imutáveis, sapatilhas rosas, tutus, e infinitas acrobacias ilustrando um homem em busca do inacessível, amores sem esperança, mulheres inacessíveis… Um corpo extra humano, esta era a busca dos balés românticos. Um corpo além dos limites humanos, que pudesse ser etéreo. E para isso as pontas como acessório que tirasse os pés do chão, permitindo ao homem ser elfo, duende, fada.
A “Bela Adormecida” é despertada pela dança moderna numa época de incertezas. Uma época em que as ciências, as artes, as religiões eram postos à prova. No final do século XIX e início do século XX as artes precisaram de uma nova linguagem que expressasse toda ruptura que acontecia, principalmente depois da primeira guerra mundial. Neste movimento, a dança moderna foi contra o academicismo e os artifícios do balé, aceitando e afirmando, antes de tudo, o humano. Valorizando não apenas a leveza, o gracioso, mas o expressivo. Assim, contextos de guerra, de fronteiras, sentimentos como ciúme, inveja, personagens como Medéia e Joana D’arc são colocadas nos palcos. O trabalho com o corpo desce do ideal, das pontas, e valoriza o contato com a terra, a consciência do corpo próprio e não a imagem, os pés no chão. A dança moderna propõe um corpo humano, real, um corpo que passou por uma guerra. Não era mais possível sustentar o etéreo. A dança moderna resgata o primitivo, tira as sapatilhas, restabelece o contato com o chão, e busca o interior do homem.
A dança moderna contribuiu para devolver ao homem o sentimento do corpo, despertando o desejo de expressar-se inteiro, centrado em si mesmo.
Continuidade espiralada
Martha Graham foi um dos maiores nomes da dança moderna americana e fundamentou uma das poucas técnicas de dança moderna utilizada até os dias de hoje. Não foi o maior objetivo de Graham codificar uma técnica. O maior objetivo desta bailarina e coreógrafa foi o de expressar o interior do homem, revelar as emoções humanas. E para desenvolver suas obras Graham acabou estruturando uma técnica que permitisse a exploração da expressividade.
Para desenvolver sua técnica, Graham partiu do que denominou o “ato essencial à vida” respirar. E, sentada, respirando, observou os movimentos corporais decorrentes da respiração. A inalação foi associada a um movimento de expansão e liberação do corpo, denominado release. A exalação foi associada a um movimento de contração, de deixar o sopro sair, denominado contraction. Graham também observou que o movimento partia sempre de um centro motor, a pélvis, e que se desenvolvia a partir deste centro seguindo a coluna lombar, torácica e cervical até chegar aos membros e à cabeça.
A partir deste princípio de contração e release, Graham desenvolveu toda sua técnica. A bailarina resume o movimento como sendo uma continuidade entre releases e contrações a partir de um centro motor. A espiral é outro princípio atrelado à contração e ao release, que além de significar desenvolvimentos da coluna em espiral, traz o princípio de continuidade crescente do movimento. Uma contração nunca é igual à anterior, pois ao desenvolvê-la o corpo já se modificou, alongou, cresceu. Assim, o desenho resultante do movimento contínuo entre contrações e releases é sempre uma espiral. Os princípios do movimento em Graham são sempre os mesmos. Os exercícios variam, as posições se alteram, mas os princípios são sempre os mesmos. Retificando, para Graham o movimento, a partir de um centro motor, é uma sucessão contínua e crescente em espiral entre contrações e releases.
Outro aspecto a ser destacado é o centro motor gerador do movimento, a pélvis. O movimento na técnica de Graham sempre parte do centro (a pélvis) e se desenvolve em direção às extremidades percorrendo sucessivamente a coluna lombar, torácica até a cervical. No que se refere à respiração: abdome, costelas, peito. A importância do centro é imensa, nenhum braço é erguido sem que a força propulsora do movimento parta do centro e se desenvolva até levantar o braço.
A prática de uma técnica como esta tem um imenso poder de integração corporal, pois os exercícios não fragmentam braços, pernas em execuções onde o centro fica esquecido, mas trabalha com o corpo como um todo indissociável a partir do centro e de um estímulo de vida: a respiração. Além disso, o movimento é visto como uma continuidade, o que valoriza o processo, tornando a forma do movimento conseqüência, bem como não supervalorizando o virtuoso, mas o expressivo. Para Graham o movimento não inicia, nem cessa, apenas continua.
Esta continuidade na técnica de Graham evidencia o crescimento em espiral mencionado anteriormente. Neste aspecto a técnica vai além do movimento natural decorrente da respiração, pois a proposta técnica é o alongamento crescente seja na inspiração ou na expiração. A diferença é que no release / inspiração este crescimento acontece em linha “reta”’, ou melhor, no empilhamento usual da coluna; e na contração / expiração este crescimento acontece em curva. A expiração jamais encolhe o corpo, ao contrário alonga-o ainda mais na possibilidade da curva.
Abrindo espaço ao ser humano
Frente às buscas e mudanças paradigmáticas, encontramos na técnica de Graham uma possibilidade convergente ao paradigma holístico ou sistêmico. Graham ao iniciar suas buscas próprias rebela-se contra o naturalismo de Isadora Duncan, que enfatizava movimentos das ondas, do vento, dos baixo-relevos gregos. Graham gritava com suas propostas coreográficas: “eu sou humana”. Muitos atribuíram críticas à dança de Graham, por esta ser uma dança “feia”, por vezes “grotesca”. No entanto, para esta bailarina, acima de qualquer ideal, acima de qualquer eficiência estava a expressão humana. Graham queria revelar o interior de suas personagens, e através da respiração trouxe este contato e esta relação do corpo interno externo. Trabalhar a partir destes princípios técnicos estruturados no ato de respirar permite uma visão mais relacional e integrada com o mundo, aspectos convergentes à concepção sistêmica.
“A concepção sistêmica propiciará que a ciência e a educação vejam o mundo em termos de relações e de integração. Os sistemas são totalidades integradas, cujas propriedades não se reduzem às unidades menores.A ciência e a educação atuais não poderão mais trabalhar na idéia de transmitir um produto acabado em suas aulas ou experiências, pois o pensamento sistêmico é pensar o processo; a inter-relação, a interação e os opostos são unificados através da oscilação” (Moreira (org.), 1999, p.205).
A possibilidade que Graham nos abre, tendo em vista seus princípios técnicos, é apropriada à compreensão do corpo visto como uma totalidade integrada. E na Dança, para propormos um questionamento paradigmático, é preciso, antes de tudo, experimentá-lo no corpo. É possível, entretanto, executar os exercícios técnicos de Graham dissociando-os em formas para os braços, para as pernas etc. E isto acontece com freqüência, possivelmente devido ao predomínio paradigmático do dualismo cartesiano.
Durante o desenvolvimento da aplicação prática de nossa pesquisa de mestrado, várias vezes pudemos perceber dissociações. Por exemplo, durante a explicação de um exercício, certa vez, tamanha foi a fragmentação no discurso sobre um exercício, que esta mesma fragmentação podia ser percebida no corpo das bailarinas. Depois de várias práticas pude perceber que simplesmente mostrar, desenvolvendo o exercício corporal em toda sua complexidade, sem utilizar demasiadamente a linguagem como recurso explicativo, era mais favorável ao desenvolvimento integrado do movimento. Ao propor um trabalho que se aproxime de um paradigma mais sistêmico é necessário, antes de mais nada, nos colocarmos, como educadores, artistas ou esportistas num exercício constante em busca da integração e da complexidade. Por vezes, somos capazes de compreender, teorizar, mas a fragmentação e tantos anos de dicotomia tatuados no nosso corpo nos escapam nas atividades mais cotidianas. É preciso que nos consideremos como parte de um processo que se move em busca da totalidade.
Novos conceitos surgem e são estudados, porém em áreas como a Dança e a Educação Física, que trazem práticas corporais, é preciso que estes conceitos aconteçam atrelados à experiência, ou mais uma vez estaremos separando, fragmentando, cartesianamente. Não estamos aqui separando a razão do corpo. Entendemos que a razão por envolver estruturas corporais como o cérebro e órgãos sensoriais faz parte da corporeidade. Porém, o que muitas vezes observamos na prática diária da Dança e da Educação Física é que teoria e prática parecem não se relacionar. Muitas vezes a prática elimina a reflexão teórica, bem como disciplinas teóricas se desenvolvem apenas na abstração, distanciando-se da realidade integrada que podemos perceber na práxis. O conceito precisa se aproximar da contextualização vivida. Se a proposta é vivenciar as inter-relações, compreender a complexidade dos fenômenos, não podemos ser simplistas.
O estudo de uma técnica ancorada na respiração e a busca pelas relações entre um trabalho baseado na respiração e o movimento expressivo nos fizeram não apenas entender o desenvolvimento do movimento no corpo de uma forma mais integrada. A experiência física desta integração nos propiciou um novo olhar sobre o mundo e uma busca a paradigmas mais condizentes a esta corporeidade que se colocou frente ao mundo.
Uma simples reflexão sobre o ato de respirar pode nos trazer esta visão integradora, inter-relacional, holística, sistêmica. Respiração é vida. O ar que respiramos nos mantém vivos. No entanto, esta atividade, tantas vezes involuntária e inconsciente mostra-se mais complexa. Se pensarmos que a cada inspiração renascemos, oxigenamos nossos tecidos; e a cada expiração morremos, podemos compreender que vida e morte não são opostos, separados, fazem parte de uma mesma unidade que oscila ora se apresentando como uma ou outra. Fazendo uma analogia com a física quântica; “ora onda, ora partícula”.
Ressaltamos no presente artigo o fio condutor de nossa dissertação de mestrado, a técnica de Martha Graham. Através dela pudemos perceber, conceituar e vivenciar o corpo em sua dimensão humana, com sua unidade interrelacionada a si e ao mundo, com sua individualidade, com sua história e sua cultura, com suas limitações e possibilidades. Este trabalho ancorado em princípios baseados na respiração traz uma possibilidade em termos de trabalho corporal que expressivamente revela a integração. Porém, estamos num processo, que muitas vezes ainda se dicotomiza em busca de uma cultura que valorize a corporeidade, a existência, a integração sujeito objeto, interioridade exterioridade, cultura natureza. E cabe a nós o exercício de valorização do processo, da práxis, da interpretação, da qualidade, do cultivo, aspectos que caminham rumo a uma possibilidade integral. E “simplesmente” respirar pode ser um primeiro passo.
“Será um pavor e uma alegria /…/ Como tudo começa? Creio que nunca começa. Apenas continua” (Graham, 1993, p.184).
*Patrícia Gracia Leal é mestra em Dança formada pela Unicamp, bacharel em Comunicação Social pela Unesp, coordenadora e docente na graduação da Dança da Faculdade Paulista de Artes e docente na graduação do curso de Educação Física da Faculdade de Americana. Diretora do EnOutros, projeto de pesquisa e criação em Dança.
Referências Bibliográficas
CREMA, R. – Introdução à Visão Holística. São Paulo: Summus, 1989.
GARAUDY, R. – Dançar a Vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1973.
GONÇALVES, M. A. S. – Sentir, Pensar, Agir. Campinas: Papirus, 1994, p.67.
GRAHAM, M. – Memória do Sangue. São Paulo: Siciliano, 1993.
MERLEAU-PONTY, M. – Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
MILLE, A. de – Martha: The Life and Work of Martha Graham. New York: Random House, 1991.
MOREIRA, W. W. (Org.) – Educação Física e Esportes: perspectivas para o século XXI. Campinas: Papirus, 1999, p.55.
ZOHAR, D. – O Ser Quântico. São Paulo: Best Seller, 1990.