Dança além das metáforas
A entrelinha entre vida e morte. O tênue instante entre o florescer e o submergir. Um suspiro suspenso no tempo. Folhas de lótus insurgem ao céu. O branco e preto dão os tons da cena. Os movimentos lentos, ininterruptos e precisos do butoh de Ushio Amagatsu preenchem esse ambiente surreal e de extrema beleza que causa perplexidade em qualquer espectador.
Esta é a cena do espetáculo Kagemi – Além das metáforas do espelho (2000), da companhia japonesa Sankai Juku. Apresentado em Brasília, nos dias 8 e 9 de setembro, dentro do festival Cena Contemporânea, a obra de Ushio Amagatsu arrebatou a platéia que lotava o teatro Villa Lobos. Mais de 1000 pessoas aplaudiram o espetáculo de pé.
Em Kagemi, a sensação é que o tempo ficou estanque durante uma hora e meia em que o espetáculo transcorre. Os mais sutis movimentos de corpo, luz, sombra, som e silêncio saltam da cena como se estivéssemos assistindo tudo por uma lupa. A experiência de entrar em contato com outra forma de representar o mundo é anestesiante.
“O butoh transcende sua localização japonesa. Suas imagens e fontes de inspiração, embora arquétipas, brutas e primitivas, podem ser exploradas e reinterpretadas dentro da dinâmica cultural contemporânea”, diz Maura Baiochi em seu livro Butoh – Dança veredas da d’alma [1]. Mesmo valorizando seu caráter ‘universal’, Maura Baiochi destaca em seu livro como é difícil para um ocidental definir e até compreender essa arte japonesa. Um trabalho que diverge da estética vigente no mundo globalizado. Um contraponto ao imediatismo, ao excesso, e à razão.
Como uma arte consegue ser tão próxima e tão distante é um paradoxo que reside na própria origem do butoh. Entre os anos 50 e 60, no período pós-guerra, após as cidades de Hiroshima e Nagasaki terem sido destruídas por bombas nucleares, houve um movimento artístico no Japão em contramão ao progresso imposto pelo sistema ocidental, que buscou uma conexão com os antepassados. “Mais que a um simples retorno às fontes, procedeu a uma fértil busca do reconhecimento do elo ancestral. Movimento de introspecção no berço da modernidade – onde se exprimiam duas vontades fundamentais: a necessidade de pertencer à dinâmica do mundo como um todo e a apreensão de uma abertura em direção ao outro, ao estrangeiro” [2], diz Nourit Masson-Sékiné [3], ao revelar a intenção de Tatsumi Hijikata um dos percussores do butoh.
Hijikata foi o fundador do butoh ankoku (dança das trevas) e é responsabilizado por ter desenvolvido os princípios dessa arte. Kazuo Ohno é o outro expoente do butoh, adotando uma linha de criação mais espontânea e, comparado a Hijikata, é conhecido por usar uma estética menos sombria, por representar ‘a dança da luz’. Ushio Amagatsu teve sua formação com os dois mestres. De Kazuo Ohno herdou a estética da ‘luz’, mas é considerado discípulo mais direto de Hijikata pela técnica desenvolvida em suas obras.
Em 1975, Amagatsu, fundou o grupo Sankai Juku. A companhia foi uma das disseminadoras do butoh no ocidente, tendo se apresentado pela primeira vez na Europa, em 1980, no Festival de Nancy (França). Curiosamente foi esse contato com ‘o outro’ que consolidou a manifestação no próprio Japão. “O sucesso da dança butoh no exterior auxiliou o florescimento do butoh no Japão onde passou a ser mais conhecido e respeitado como arte e não apenas como expressão de rebeldia”, explica Maura Baiocchi [4]. Isso porque, além de se opor aos padrões ocidentais, o butoh também transgride as convenções das manifestações tradicionais japonesas, e por algum tempo não foi reconhecida pelos seus próprios pares.
O butoh é uma expressão de resistência, dentro e fora de sua cultura. E mesmo com toda estranheza que apresenta, deixa impressões marcantes em quem a contempla. Traduzir tal arte com palavras sempre incorre na possibilidade do insuficiente. Sua força está no presente. O trabalho do grupo Sankai Juku reflete muito bem essa reflexão, ao trazer para o palco um espetáculo que vai além de qualquer metáfora. “O butoh é mais uma tentativa de articular a linguagem corporal do que transmitir alguma idéia e visa proporcionar a cada espectador uma viagem particular ao seu mundo interior” [5], revela Ushio Amagatsu.
Notas:
1. Baiocchi, Maura. Butoh: dança veredas d’alma. São Paulo:Palas Athena,1995.
2. Idem
3. Nourit Masson-Sékiné é co-autora do livro Butoh – Shades of Darkness.
4. Baiocchi, Maura. Butoh: dança veredas d’alma. São Paulo:Palas Athena,1995.
5. Idem