Dança.Com: apenas o primeiro passo | Dança.Com: only the first step
O Dança.Com teve sua primeira edição realizada em Porto Alegre, no período de 26 de abril a 2 de maio, numa iniciativa da Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre, através de seu Centro Municipal de Dança. Uma das provocações iniciais, que serviu para concentrar esforços em torno desta iniciativa, foi a intenção de “estabelecer não apenas um ponto, mas múltiplos pontos de comunicação na produção de dança hoje”, nas palavras do coordenador Airton Tomazzoni.
A programação foi elencada partindo de três eixos colocados em foco: o corpo na cena contemporânea, os caminhos da performance e o uso das novas tecnologias. Em torno desses eixos, foram agrupadas ações distintas, viabilizadas por diferentes parceiros e articuladas por meio de um pensamento que buscou privilegiar as conexões possíveis, investindo nos encontros.
É possível já aqui evidenciar um primeiro aspecto positivo do evento: a estratégia de mobilizar instâncias independentes para sua efetivação, constituindo uma “rede de articulação e colaboração” que atuou inclusive na produção do evento, compartilhando institucionalmente sua realização.
Além da ação do Centro Municipal de Dança, na elaboração e desenvolvimento do projeto, e na articulação de artistas locais como Cibele Sastre, Luciana Paludo e Fernanda Carvalho Leite, dentre outros, tal iniciativa propiciou a atuação do projeto dança em foco – Festival Internacional de video & dança, responsável pela mostra de videodança e por uma oficina; da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), através de seu Programa de Pós-Graduação de Artes Cênicas, responsável pelo Seminário Internacional Corpo, Performance e Tecnologia; e do programa Rumos Itaú Cultural Dança 2009/10, que viabilizou a apresentação de algumas mostras de processos de sua mais recente edição.
Teoricamente, é exatamente através da viabilização de parcerias que eventos desse porte são produzidos. Na prática, o que se percebe é que poucas vezes a efetivação destas parcerias possibilitam uma concreta oportunidade de colaboração entre os parceiros envolvidos, contribuindo para uma gestão mais compartilhada, que por sua vez favoreça as trocas e contágios mútuos que daí possam resultar, trazendo lufadas de ar aos formatos mais enrijecidos.
Outro aspecto positivo que merece destaque foi o fato do evento ter se concentrado em grande parte no Teatro Renascença e na sala Álvaro Moreyra, onde também está sediado o Centro de Dança, conferindo ares de caseiro ao evento, no melhor sentido daquilo que é feito em casa, lugar mesmo do cuidado e do acolhimento, que favorece as permanências e prepara para as desestabilizações cotidianas.
A opção por um formato enxuto de programação foi feliz; com intervalos entre as ações agendadas e sem choque de proposições, favoreceu-se o deslocamento tranquilo do público e dos artistas e, conseqüentemente, uma participação mais constante ao longo de toda a programação. Os espaçamentos, por sua vez, potencializam novos encontros, que não se efetivam no regime de urgência normalmente conferido aos festivais.
Dessa forma, foi possível partilhar da experiência de Andrew Harwood (Canadá) no Seminário, por exemplo, em sua narrativa de anos de trabalho com a técnica do Contato Improvisação ao lado de Steve Paxton, e assisti-lo no próprio ato de improvisar, em sala de aula e em cena, ao lado de Paula Zacharias (Argentina) e Fernanda Carvalho Leite (RS). Igualmente rico presenciar a fala de Clarisse Bardiot (França), sobre o evento experimental 9 Evenings, articulado por Robert Rauschenberg em 1966, em Nova York, e aproximá-la da fala de Ivani Santana, em que descreveu suas experiências com Dança e Novas Tecnologias. Igualmente importante aproximar a dimensão política apresentada em alguns trabalhos, sejam eles teóricos ou práticos, da apresentação feita por Leonel Brum, coordenador de Dança da Funarte, acerca dos novos rumos que a instituição vai tomando. Qual o papel do artista na constituição de uma política pública para a dança no Brasil? Quais os papeis de mobilização e participação que ocupamos – ou NÃO ocupamos – em nossas cidades, a fim de nos fazermos representados?
Muitas são as conexões possíveis, quando os encontros se efetivam. A intenção manifesta pela coordenação do evento e a disposição de todos os parceiros envolvidos sinalizam para boas perspectivas de continuidade do Dança.Com. Motivo de celebração, portanto, considerando nosso vasto território nacional, ainda tão árido de iniciativas potentes. Nas palavras de Tomazzoni, “que o COM que consta no nome do festival signifique estar conectado COM o planeta, estar COM o público, estar COM quem queira debater e trocar ideias.”
Lembramos de Stuart Hall, ao nos afirmar que “uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos.”(HALL, 2006, p.50) Hall nos propõe pensarmos nas culturas nacionais como comunidades imaginadas. Considerando que as identidades nacionais não são transmitidas hereditariamente, ou seja, não nascem conosco, evidencia-se que a nação é produtora de sentidos, um sistema de representação cultural que se constitui numa comunidade simbólica. É a partir desse ponto que Benedict Anderson argumenta que a identidade nacional é uma comunidade imaginada. E justo por isso convém indagarmos acerca das estratégias representacionais que acionamos – e nas quais nos engendramos – na construção de nossas noções de pertencimento e identidade cultural.
Ainda segundo Hall, três aspectos devem ser levados em conta na constituição de uma cultura nacional em comunidade imaginada: as memórias do passado, o desejo por viver junto, e a perpetuação da herança. No entanto adverte que uma cultura nacional nunca é somente um ponto de lealdade, união e identificação simbólica, é também uma estrutura de poder cultural.
É a partir disso que avaliamos a importância de tais iniciativas no âmbito de uma cidade. Não só pela dimensão dos encontros ali potencializada, mas, sobretudo, pela evidência que se pode dar aos discursos de uma comunidade, pela afirmação dos sentidos ali produzidos, num contexto onde suas particularidades são atravessadas por outros fluxos e novos agenciamentos se fundam. Com todas as dificuldades, problemas e deficiências que possam aparecer, algo além sempre se torna visível também: maneiras de fazer e modos de existência, regimes de temporalidade diversos, habitações possíveis, comunidades imaginadas e cidades invisíveis.
Andréa Bardawil é coreógrafa e coordenadora pedagógica da Bienal Internacional de Dança do Ceará
Bibliografia:
HALL, Stuart (2006). A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A.
Leia também: Festival Dança.Com começa hoje discutindo corpo, performance e tecnologia
Festival Dança.Com privilegia encontros e conversas
Dança.Com had its first edition in Porto Alegre, from April 26 to May 2nd, produced by the City Culture Office, through its City Dance Center. One of the initial provocations, which worked to concentrate the efforts surrounding this initiative, was the intention to “establish not only one point, but multiple points of communication in dance production today”, in the words of Airton Tomazzoni, coordinator of the event.
The program was created following three guidelines: the body in the contemporary scene, the paths of performance and the use of new technologies. Distinct actions were grouped within these guidelines. They were made possible by different partners and were articulated through a line of thought that sought to favor possible connections, investing in encounters.
At this point, it is already possible to highlight another positive aspect of the event: the strategy to mobilize independent initiatives, establishing a “network of articulation and collaboration” that worked at the very production of the event, sharing its execution on an institutional level.
The City Dance Center acted in the project’s elaboration and development and articulated local artists such as Cibele Sastre, Luciana Paludo and Fernanda Carvalho Leite, among others. The initiative also allowed the action of dança em foco – – International Videodance Festival, which was responsible for the videodance showcase and a workshop; the Federal University of Rio Grande do Sul organized the Body, Performance and Technology international seminar, through its Performing Arts Post-Graduate Program; the Itaú Cultural Itaú Cultural Rumos Dança program brought some of its recent edition’s process showcases.
Theoretically, the production such large events is made possible through partnerships. In reality, what can be observed is that such partnerships rarely allow a concrete opportunity for collaboration among the partners, contributing for shared management, which could allow mutual exchange that could result from them, bringing fresh air to rigid formats.
Another positive aspect is the fact that the event was concentrated mostly at Renascença Theater, where the Dance Center is also located, providing a homelike atmosphere to the event, homemade in the best sense, a place for caring and welcoming that favors permanence and prepares for daily destabilizations.
The choice of a lean program format was fortunate. The breaks between the scheduled activities and the lack clashing proposals allowed calm transitions for the audience and artists and a more constant participation throughout the whole program. The breaks also encouraged encounters, which often don´t take place in the usually hectic rhythm of festivals.
Thus, it was possible to share the experience of Canadian artist Andrew Harwood, for instance, as he talked about the years working with the Contact Improvisation with Steve Paxton and to watch him improvising alongside Paula Zacharias (Argentina) and Fernanda Carvalho Leite (Brazil). It was equally exciting to listen to Clarisse Bardiot (France) talk about 9 Evenings, an experimental event articulated by Robert Rauchenberg in 1996, in New York, and compare it to Ivani Santana describing her experience with Dance and New Technologies. It was equally important to see Leonel Brum, the dance coordinator of the National Arts Foundation, discuss the political aspect of some of the works, both theoretical and practical, within the Foundation’s new paths. What is the role of the artist in the establishment of public policies for dance in Brazil? What are the mobilization and participation roles we play – or do NOT play – in our cities, in order to make ourselves represented?
There are many possible connections when encounters take place. The intention of the event’s organizers and the willingness of all the partners pointed towards good perspectives of continuity for Dança.Com. Therefore, this is a reason for celebration, considering our vast national territory with such scarcity of powerful initiatives.
Let us remember Stuart Hall. He states that a “national culture is a discourse ¬ – a way to build meanings that influence and organize both our actions and the conception we have of ourselves.” (HALL, 2006, p.50) Hall proposes we think about national cultures as imagined communities. Considering national identities are not transmitted hereditarily, they are not born with us, it becomes clear that the nation produces meaning, a system of cultural representation that is established as a symbolic community. After this point, Benedict Anderson argues that national identity is an imagined community. And that is exactly why it is important we question ourselves about the representation strategies we use – and which we engender – in building our ideas of belonging and cultural identity.
According to Hall, three aspects should be taken into account in building a national culture in an imagined community: the memories of the past, the desire to live together and the perpetuation of heritage. He warns, however, that a national culture is never a point of loyalty, union and symbolic identification, it is also a structure of cultural power.
We evaluate the importance of such initiatives in the context of a city upon that issue. Not only because of the dimension of the encounters, but above all because of the evidence it casts on a community’s discourse, because of the meanings produced there, in a context in which its particularities are crossed by other flows and new assemblages that are established. With all the difficulties, problems and deficiencies that may arise, something beyond always becomes visible: ways of working and modes of existence, different time regimen, possible habitations, imagined communities and invisible cities.
Andréa Bardawil is a choreographer and pedagogical coordinator of Bienal Internacional de Dança do Ceará