Dança possível: ligações do corpo na dança cearense

Rosa Primo é bailarina, jornalista e crítica de dança do Jornal O Povo, mestranda em Sociologia na Universidade Federal do Ceará, com pesquisa sobre a dança cênica em Fortaleza.

A dança possível: as ligações do corpo na dança cênica cearense

O processo de criação da dança acadêmica em Fortaleza, teve início por volta de 1920. Até os primeiros anos da década de 1990, o corpo do bailarino constituiu-se a partir de um modelo cuja referencia baseava-se numa visão essencialista, identitária, permeada por uma certa interioridade. Tais aspectos encontravam suporte sobretudo quando o ser bailarino, o fazer dança, apoiava-se na estrutura do balé clássico.

Nos últimos anos, contudo, tal concepção do corpo foi cada vez mais conjugando-se com fluxos mutantes, pondo em jogo multiplicidades, territórios, devires, afetos e acontecimentos não mais possíveis de serem mobilizados por leis, instituições e alicerces que antes serviam de referência. A idéia de corpo como um núcleo de sentido se dissolveu num território de possibilidades. Que signos caracterizam a realidade presente afetando e compondo este corpo na dança contemporânea?

Um primeiro signo, talvez o principal, conforme Sylvio Gadelha, é o da complexidade, isto é, uma certa sensibilidade para o fato de que nossas experiências, na e com a duração, e nossas relações de implicação, no e com o espaço vivido, já não podem ser tomadas em termos simplistas, unidimensionais ou à base de relações lineares de causa e efeito. O estudo acerca da complexidade e de temas que lhes são correlatos – teoria do caos, paradigma holográfico, auto-organização, autopoiésis, teoria dos fractais, teoria de sistemas complexos, estudos das redes, ciências cognitivas, ecosofia, etc. – é tão vasto e recobre tantos campos do conhecimento e distintas esferas do real, que é difícil dimensioná-lo e dar uma idéia de toda sua riqueza.

O segundo signo constitui-se como expressão do primeiro: diz respeito às profundas e amplas transformações materiais e simbólicas pelas quais o mundo tem passado, particularmente desde meados do século XX. Tais transformações recobrem os mais variados espectros de favores, dizendo respeito à economia, à política, à cultura, aos costumes e valores, ao lazer e ao trabalho, à tecnociência, à informática, à robótica, à genética, à comunicação e às sociabilidades.

Um terceiro e último signo, estreitamente ligado aos anteriores, bem como à revolução-biotecno-informacional, ao fenômeno da globalização (mundialização da economia e da cultura) e à polêmica em torno da hegemonia do neoliberalismo, refere-se ao modo como o capitalismo contemporâneo vem impelindo cada corpo a se conectar direta e cotidianamente com as necessidades do mercado global.

Essas vias de construção do corpo no capitalismo contemporâneo, fazem parte dos dilemas e efeitos do processo de globalização, bem como: a desregulamentação da economia, o esvaziamento do Estado-Nação, a concepção de desenvolvimento social sustentada pelo neoliberalismo, a deificação do dinheiro, do lucro e da técnica, as desigualdades e os mecanismos de exclusão – além dos mecanismos imateriais, que o neocapitalismo põe em funcionamento, cujo intuito é de monitorar, regular, modelizar e controlar a vida.

A dança contemporânea, nesse contexto, parece emergir afetada e atravessada por uma série de vetores intensivos (tecnológicos, políticos, culturais, econômicos, lingüísticos – num incessante jogo de fuga e de captura) os quais ela busca expressar (dar consistência, dar concreção) das formas as mais diversas. Estas, por sua vez, só têm condições de possibilidade através da criação e da experimentação: joga-se – misturando, montando e desmontando, conectando e desconectando – com tudo; com os corpos, com as linguagens, com os maquinismos, com tempos e espaços.

Ora, em meio às mutações intensivas que têm lugar na dança cênica (e, portanto, na condição dos corpos e nos movimentos que eles aceleram ou desaceleram) em nossa contemporaneidade, uma série de agitações se dá, lançando corpos, bailarinos, coreógrafos, cenógrafos e compositores em devires outros. Devires estes que, apesar de guardarem consigo algunselementos do balé clássico, ou do moderno, já não podem ser redutíveis àssuas prescrições, códigos, valores e normas. Com efeito, é toda uma concepção da dança, é toda uma maneira de conceber, modelar e projetar o que o corpo de um bailarino pode e deve fazer, e com que música, e sob que tipo de cenário, que, daqui por diante, são postos em questão. Já não se trata mais de realizar o possível conforme uma cifra canônica, mas de inventá-lo através da criação.

Mas, então, o que se passa? O que sucede com a sociedade, com a música, com o corpo, com o movimento e com a dança? Como uns ressoam nos outros? Como uns ressoam com os outros? Que se passa entre eles? Como “dar conta” de todas essas novas tendências virtuais que sacodem o sócius e a dança, e que re-inventam o corpo, seus movimentos e suas potências de conexão? É em meio a essas indagações que a dança em Fortaleza parece configurar-se.

Por mais de seis décadas, o pensamento cartesiano contribui para a formação da subjetividade do bailarino cearense, manifestando-se na afirmação e legitimação do balé clássico. Neste, o corpo era percebido como algo concreto, visível, evoluindo no espaço cartesiano objetivo. Atualmente, existe na dança em Fortaleza um corpo visível e virtual ao mesmo tempo, feixe de forças e transformador de espaço e de tempo.

Em pouco mais de sete anos, sobretudo com a criação do Colégio de Dança do Ceará, passou-se a trabalhar e visualizar fluxos de movimentos mais que formas ou figuras (como no balé clássico). Um turbilhão de coisas – eclosão de uma nova sensibilidade e de uma nova subjetividade – subverteu uma ordem, suspendendo e suportando por inteiro um movimento que não se encontrava no plano das formas dadas: uma espécie de vertigem do equilíbrio quando se está de pé.>

A IV Bienal de Dança do Ceará – que ocorreu, em Fortaleza, na primeira semana deste mês de novembro – parece que veio pontuar, mais ainda, a necessidade de reflexão deste momento da dança no Ceará: seusacontecimentos foram tão intensos quanto microscópicos – o que nos dá mais elementos para pensarmos esse processo de mutabilidade na dança cearense.

Pensar a dança possível – o espaço da não-inscrição, doravante explorável, delimitável, aberto – e as ligações do corpo cearense na contemporaneidade, traçando mapas e buscando cartografar algumas tendências e impasses críticos, nos levou aos filósofos Michel Foucault e Gilles Deleuze para com eles, e a partir deles, estabelecer uma rota de navegação que nos ajude a posicionar bem o problema que nos inquieta – que nos faz pensar – e a problematizar as questões que o habitam e que nos guiaram à pesquisa no Programa de Mestrado em Sociologia da Universidade Federal do Ceará.

A passagem da sociedade disciplinar (Foucault), permeada por uma lógica fechada, geométrica e quantitativa, à sociedade de controle (Deleuze), cuja lógica baseia-se numa relação aberta, qualitativa e expressiva, se caracteriza, inicialmente, pelo desmoronamento dos muros que definiam as instituições. Haverá, portanto, cada vez menos distinção entre o dentro e o fora.

No corpo, tal fronteira (dentro/fora) há muito foi rompida, sobretudo a partir da transformação do interior em terreno de conquistas científicas. O corpo contemporâneo, assim como a dança atual, desfaz essa fronteira dentro/fora. No corpo já não há mais separação entre interior e exterior, mas coexistência, mistura múltipla, osmose.

De uma maneira geral, já não trabalha-se mais, como foco central, osmúsculos na dança – o deslocamento do corpo, como um objeto, num espaço exterior. Músculos, ossos, tendões, órgãos, devem torna-se vias de ligações do espaço interno e do espaço externo. O espaço interior é coextensivo ao espaço exterior. Pré-movimento e movimento, movimento virtual e atual, se desdobram em fluxos (visíveis/invisíveis) numa correspondência constante dentro/fora (interior/exterior) fazendo-se gesto na dança.

Essas duas abordagens, sociedade disciplinar (Foucault) e sociedade de controle (Deleuze), podem abrir caminhos, capazes de agenciar, modos de entender como o corpo se insere no tempo e produz dança. Traçar essas linhas, talvez nos dê condições de saber se a dança, na realidade cearense, está preparada para lidar com o que lhe faz problema, com as mutações no processo de subjetivação, para exercitar-se na e com a criação de novos possíveis.

Mais do que apenas rastrear e caracterizar um estado de coisas já constituído no campo da dança, trata-se de captar tendências e/ou vetores intensivos, que ressoando no corpo desta, fustigam-no, inquietam-no, pedindo passagem e formas outras de concreção e consistência. Numa palavra: trata-se de perguntar “sobre” o que se passa a fim de poder estimar o que pode (o corpo/pensamento) a dança cênica em nossa realidade, em nossa (in)atualidade.