[Descompêndio] O medo que temos do corpo

No verão de 2005, no âmbito do Festival d’Avignon, em França, uma das maiores polémicas colocou-se acerca do uso, aparentemente abusivo, do corpo em cena. Medo: e se de repente o corpo tivesse tomado conta da linearidade que só a palavra permitia e nos forçasse agora a um confronto nada saudável com a nossa capacidade em filtrarmos a realidade, porque sem vontade de dar respostas. A questão era tanto mais relevante se pensarmos que a direcção artística dessa edição tinha sido entregue ao coreógrafo belga Jan Fabre, aparentemente menos transgressor que o director do ano imediatamente anterior, o encenador alemão Thomas Ostermeier, director da Schaubühne e enfant terrible do teatro europeu. Doce ilusão.Fabre colocou no centro do festival a dança metafórica de Christian Rizzo, o questionamento dos formatos de Mathilde Monnier e a violência de Wim Wandekeybus, forçando o público, a crítica e os próprios programadores a uma verdadeira revolução estética, artística e discursiva. Ter-se-iam acabado as fronteiras? Poderia a dança não ser dança, o teatro não ser teatro? Seríamos todos “cavaleiros do desespero”, como anunciava Jan Fabre no espectáculo de abertura, L’Histoire des larmes?

O histerismo em torno dos espectáculos dessa edição relevou apenas uma coisa: um divórcio entre a criação e o público, onde a crítica também descera do pedestal de baluarte da legitimação. Haviam-se perdido as referências e nada de novo era proposto. Para onde seguir, agora, mergulhados que estávamos na “crise da representação”, como definiu o teórico francês Patrice Pavis?[1]

Por isso, e para se compreender como se chegou aqui – a este território de aparente não diálogo entre o coreógrafo e o espectador -, é que nunca foram tão fundamentais como agora as palavras de Laurence Louppe, retiradas da bíblia Poétique de la Danse Contemporaine: “como pode o corpo contemporâneo encontrar a sua liberdade? Mas sobretudo a possibilidade de inaugurar um espaço que lhe seja próprio?”.

Na mesma linha vão as três perguntas que o coreógrafo João Fiadeiro definiu em 1998, no número especial da Theaterschrift, como essenciais para a construção desse percurso e que permanecem, também elas, actuais: “O que é que eu sei fazer? O que é que eu posso fazer? O que é que eu devo fazer (tendo em conta o objectivo)?”.

Louppe tenta a explicação: “Ser bailarino é escolher o corpo e o movimento do corpo como campo de relação com o mundo, como instrumento de saber, de pensamento e de expressão. É igualmente ter confiança na dimensão ‘lírica’ do orgânico, sem que, no entanto, faça referência a uma estética nem a uma forma precisa: [nem] o gesto ou o estado de corpo neutro (voluntariosamente desacentuado e trabalhando na ausência de ‘desenho’), [ou] a sua própria qualidade lírica, à medida que o gesto é tensional ou musical”.

Mas poderemos, assim, continuar a falar de corpo? Talvez o problema esteja exactamente aí, na impossibilidade de continuarmos a falar de corpo. Pelo menos enquanto entidade abstracta. Temos vindo a assistir nas últimas duas décadas à substituição do corpo anónimo e executante pelo corpo assinado e interventivo. Talvez possamos considerar que, da mesma forma, devemos recorrer a uma dança interventiva, pois só essa, ao querer fazer rupturas e, eventualmente, provocar mudanças, procura dirigir-se ao maior número de pessoas, estejam elas mais ou menos preparadas (ou dispostas) para a distância crítica. Aliás, essa dança deve estar consciente da necessidade de apelar precisamente àqueles que, menos disponíveis, reclamam uma “solução”.

O espectador deixou de poder limitar-se a depositar as suas projecções no corpo anónimo do intérprete, passando a ser obrigado a depositá-las no corpo assinado e identificado do autor. Aquilo que antes era um território de identificação passou a ser um território de confrontação. Uma batalha nem sempre justa. Mas, parece-me, uma batalha necessária.

O coreógrafo francês Jérôme Bel, mais radical, chamar-lhe-ia “a morte do espectador”, mas reconhece, no entanto que, apesar de a desejar, será necessário encontrar elementos de identificação que ajudem o espectador a reconhecer nos outros o seu próprio corpo. Num diálogo que em 2006 manteve com a crítica Bojana Cjévic, no âmbito do TanzQuartier em Viena, explicava, a propósito da utilização de uma mulher de 60 anos no espectáculo Jerome Bel, de 1997: “com uma mulher mais velha em palco apercebi-me que muitos velhos ficavam felizes, sentiam-se mais envolvidos enquanto espectadores”. E Cjévic pergunta-lhe: “isso quer dizer que o objectivo político do teu discurso é emancipar um espectador burguês do século dezanove, que vai ao teatro para se ver representado ao identificar e reconhecer o sublime da representação?” Bel responde: “não, porque eles ficam irritados precisamente porque não há qualquer sublime”. E mais tarde acrescentará: “as pessoas que me dizem ‘vai fazer o que fazes para a rua’ nunca o iriam ver na rua”. Ou seja, Bel aponta aqui para aquela que será a situação actual da criação: o paradoxo da verosimilhança. Como ser verdadeiro sem se ser real?

Quando Pina Bausch usa os corpos de velhos inexperientes para lhes ensinar uma coreografia, como em Kontaktof com homens e mulheres de mais de 65 anos, onde importa mais saber como o renascimento é uma constante essencial à vida, ou a húngara Ezter Salómon, que em Magyar Tánok (2005), vai recuperar as danças tradicionais do seu país para as combinar com os ensinamentos do bailado clássico, procurando entender que corpo é o dela, ou quando o coreógrafo Raimund Hoghe se revela, corcunda e abjecto, num confronto idealista com o esculpido corpo de Boris Charmatz, ambos intérpretes em Regi, de Charmatz num espectáculo absolutamente hipnotizante sobre o poder e o domínio do outro, ou ainda quando a sul-africana Robyn Orlin usa o corpo de Vera Mantero, em Hey Dude…, para saber mais sobre Portugal, percebemos que essa aproximação dos corpos deve existir na consciência dos limites do corpo do espectador.

O filósofo José Gil chama-lhe “abrir o corpo”. Em Movimento Total – o Corpo e a Dança diz que “é a natureza da energia que é portadora do movimento que decide do carácter disruptivo da dança. Ora, a dança é a arte do movimento que tem o poder de criar outro tipo de movimento (…) talvez seja a arte de todos os movimentos, e portanto a arte de todas as artes”.

Assim, podemos entender que aquilo que os criadores estão a fazer é a devolver a pergunta. E, por isso, a questão prévia que se deve colocar para se compreender que corpo representado é aquele será: que corpo é esse que assiste? Qual a nossa postura perante um espectáculo assente no corpo? Como lidamos com esse corpo na sua relação com um outro corpo? E o que fazemos para nos libertarmos da expectativa criada?

Descompêndio rouba o título ao poema de Elisabeth Veiga, que começa assim: “Assobie um descompêndio/ em ritmo livre:/ descarte almanaques:/ cada um tem a sua/ fórmula de especiarias:/ torça a plumagem/ do papagaio: vista o seu estalo.” Esta coluna também.


[1] A este propósito recomendo a leitura do ensaio A Crítica Dramática face à Encenação, publicado na revista OBSCENA #6: http://www.revistaobscena.com/public/files/revista_obscena_06_ensaio.pdf