Carne / Foto: Nelson Boudier

DIZ, Puta… de CARNE… IÇAAA!!!

Artista em Salvador, Eduardo Rosa é outro novo colunista do idança, ao lado do jornalista e crítico Carlinhos Santos (sua coluna de estreia está disponível aqui). Ao longo do ano ele trará suas observações e reflexões sobre a cena de Salvador, um dos polos de intensa produção em dança no Brasil. Acompanhe.

Em roda. As cadeiras dispostas no espaço. Sim. Elas estavam. Já as pessoas, não se sabe o quanto estamos mesmo disponíveis: desejo de ouvir a solução imediata para as reivindicações, a ordem do imediato.

Há algumas semanas, a Diretoria de Dança da Funceb (Fundação Cultural do Estado da Bahia), juntamente com a Diretoria de Espaços Culturais da Fundação Cultural do Estado da Bahia e os coordenadores dos Equipamentos Culturais, vêm construindo uma proposta para o famigerado mês de abril, considerado o Mês da Dança, por conter no dia 29, sua data internacionalmente comemorada. Tal marca, em Salvador, veio principalmente do fato de que há alguns anos esse dia, em específico, começou a ser ocupado, sobretudo a partir das intensas mobilizações tanto políticas quanto artísticas do Fórum de Dança da Bahia. Feitura: encabeçamentos fundamentais como Lúcia Matos, Dulce Aquino, Suki Villas-Boas, Sérgio Andrade, Jaqueline Vasconcelos, Matias Santiago, Fátima Suarez, juntamente com multidões de artistas da dança, cuja citação derramaria o texto pra fora de qualquer roda possível nessa coluna.

Foi surgindo, então, um raciocínio de gestão cultural que começou a expandir para todo o mês de abril e consequentemente para o planejamento anual de vários espaços culturais (como o Festival Viva Dança, no Teatro Vila Velha, ou o Solar Abril pra Dança, no Cine-teatro Solar Boa Vista), bem como para a agenda de diversos Artistas da Dança, em Salvador.

Considerando essa demanda, essas duas diretorias de linguagem propuseram não somente a já existente cessão de pauta gratuita a artistas da dança em seus espaços, como também o apoio financeiro a grupos residentes neles, no caso de Salvador. Seriam os teatros: Cine-teatro Centro Cultural Plataforma, Espaço Xisto Bahia e Cine-teatro Solar Boa Vista.  Tal apoio, em tom de ajuda de custo, visava produzir uma marca fundamental: valorizar os grupos que têm constituído suas ações não apenas como usufruidores do espaço público, mas parceiros dos mesmos. Esse tipo de ação implica em um tipo de ocupação que não só se realiza no regime de pedinte: quero uma sala pra ensaiar meu grupo, quero um palco pra apresentar meu trabalho, quero… quero… meu… meu… quero meu! Podendo romper com essa cultura de pedinte, esses grupos têm também produzido um regime de ofertas, de maneiras distintas naquilo que podem: disponibilidade para programações específicas do espaço cultural e participação ativa na partilha de raciocínios de gestão do espaço e até mesmo projetos mais arrojados com inserção de ações no entorno do espaço (instituições de saúde e educação, ONG’s, Pontos de Cultura, praças, ruas etc…), ações de interatividade entre distintos grupos do espaço, ações de articulação entre o espaço cultural e outros espaços (Escola de Formação Artística, outros teatros), ou mesmo na construção e mobilização efetiva de público para esses espaços. Podemos citar a sistemática e elaborada proposição de residência co-participativa e compartilhada do grupo Finos Trapos no Espaço Xisto Bahia ou do Coletivo Construções Compartilhadas no Cine-teatro Solar Boa Vista. Ou ainda a regularidade do Tabuleiro da Dança, como evento aberto de apresentações de obras coreográficas, há 6 anos encabeçado por Jorge Silva, Matias Santiago e Anderson Rodrigo, não só gerando um público presente, como transportando-o para onde quer que o evento seja realizado e provocando-o no confronto de experiências estéticas mais confortáveis juntamente com outras mais estranhas; mobilizando os espaços culturais que têm habitado, num raciocínio vivo de formação de plateia.

Todavia, apesar da importância dessa marca a valorizar a modificação dos regimes de ocupação artística dos espaços, há algum implante famigerado do desvalor que paira sobre a mente que dança. A história parece ter de alguma forma produzido uma espécie de meme (esse vírus do simbólico, como diz o biólogo Dawkins) do desvalor, ao qual pessoas da dança se identificam e, ali atadas, (in)operam.

Seja da posição dos poucos protagonistas do Balé, para uma maioria em coro desvalorizada; seja da tradicional posição do corpo como objeto coreográfico; seja da posição efêmera da dança enquanto obra de arte cujo desaparecimento imediato empobrece sua possibilidade de acervo de valor de colecionador; seja a ausência da palavra numa cultura que colocou não só o texto, mas o drama como crivo de organização e disposição das forças sociais; sejam, ainda, os efeitos de desvalor: curtas ou inexistentes temporadas de dança, baixo interesse de patrocinadores, sobretudo quando a dança se desvia de uma ação de entretenimento pelo vigor atlético do dançarino, quase inexistência de cargos públicos cuja função sócio-política implica na criação e gestão de políticas públicas para a dança, percentagens mais minguadas nos pacotes de verbas para a dança do que para muitas outras linguagens, reservas acadêmicas na consideração da dança como área de conhecimento, preconceito social sobre dança como profissão ou sobre dançarino e orientação sexual… e roda.

Enfim [no meio], dessas diferentes citações há um tipo de atravessante que posiciona o contexto da dança num lugar de desvalor. O que se tem, parece sobra, como, da caçada sobram as carniças. Criado no ambiente do desvalor, ao dançarino parece que sobra repetir o desvalor, desvalorizando: a professora que grita com o aluno desqualificando-o ou o artista que só re-clama (pede repetidas vezes) e desmerece o gestor cultural, ou ainda na heterogeneidade dos compromissos criados, a gerência cultural que se atrapalha e negligencia o artista em seu fazer.

Quando os gestores culturais citados acima colocaram em duas reuniãos no Xisto Bahia o tal dinheiro-ajuda-de-custo, restrito aos tais grupos parceiros, tornou-se uma problema esse crivo. Na primeira reunião, chegou a ser proposto que todos os grupos que trabalham nos espaço integrassem a partilha da ajuda de custo, desconsiderando as diferenças no tipo de investimento que os mesmos fazem nesse Espaço Cutural. E, na última reunião, foi proposto que todos, independente de fazer parte ou não do Espaço, mas que estivessem compondo a programação do mês da dança, todos, absolutamente todos, indistintamente, fossem parceiros, não das responsabilidades e investimentos na oferta ao espaço, mas sim à partilha da tal sobra. Sobra sim, porque do montante que o Governo do Estado vinha investindo na Cultura (o que gerou a crença artística que podería-se apoiar nessa fonte), houve não apenas cortes brutais, como também problemas que aparentam mal planejamento, o que, no último ano da gestão anterior, produziu sucessivos atrasos de pagamentos de editais e que, no corrente ano, com a nova administração, houve ainda a suspensão dos tais editais, diminuindo a sobra.

Se o que já não era muito, capaz de alimentar a ingenuidade da pulverização do pouco (acreditada por uma espécie de excitação populista do governo e pela esperança fraternal cega dos cidadãos-artistas), agora faz da sobra uma cena que, posta no ambiente do desvalor, convoca as pessoas a raciocínios e atitudes que mais parecem disputa. Disputa, a princípio, no discurso, do argumento a favor de marcar o valor contra o argumento a favor de pulverizar o valor.

Posto em condições que se almejam profissionais em dança, disputa facilmente desliza para diz, puta: do próprio corpo que se vende, dessa nossa carne a-mostra ao puxão de cabelo pra ver quem é que vai ficar com os trocados. Haja vista, não tão passado tempo, a angústia de artistas que pareciam apoiar suas expectativas e investimento (de produção, visibilidade?) em um único programa de incentivo (Rumos Dança), distribuindo giletadas a revelia, diante da lista de selecionados.

No regime da miséria, o discurso ético da inclusão faz trocar valor pela manutenção do desvalor. A possibilidade de, na distinção, ir diferenciando, não pela tradição da miséria brasileira mantida pelos privilégios (raça, gênero, classe social…), mas pelas diferenças coletivamente problematizadas e selecionadas, como os casos dos grupos que fazem regime de troca e os que ainda só fazem regime de pedinte. Penso que é dessa tensão que mais do que produzir um ciclo vicioso da exclusão pela inclusão, do empobrecimento por um discurso engodado de democracia e pulverização, que se pode não só esperar uma solução pautada nas reclamações-clichê, mas fazer emergir do próprio convívio de onde se faz, gera e articula socialmente a dança, crivos capazes tanto de reconhecer nossas diferenças quanto de dar visibilidade às distintas contribuições, aos tempos distintos de percurso e desenvolvimento de cada um em seus contextos partilháveis, para então produzir outros e até inéditos parâmetros de valorização: do dançarino, da dança e o público potencial, da condição de inserção nos demais enredamentos de valor da sociedade e daquilo que se pode alterar historicamente a partir da dança com essas transformações.

Para o nascer desse mês que dança e daquilo que se segue, há o que se dizer dessa carne que dança

.

.

.

algo que dispensa _____mjkasbdosbd  bbcadcjasd ac_____________  diz, puta!

Diz, pensando: abre-se o movimento do desvalor em direção a

diz, Valor!

Eduardo Rosa é um jovem de 29 anos, brasileiro, uberlandense, residente em Salvador-BA há 6  anos. É artista da Dança, integrante-fundador do Coletivo Construções Compartilhadas e professor na Escola de Dança da FUNCEB.  É Mestre em Dança pelo PPGD-UFBA.

Este texto teve a colaboração com leitura crítica de Líria Morays (Artista da Dança e Doutorando em Artes Cênicas – PPGAC-UFBA).

# Siga o idança no twitter.