Em prol da expressão política do corpo

Um relato de Arthur Moreau sobre o o 8º Encontro Instituto Hemisférico , ocorrido no SESC Vila Mariana, SP Escola de Teatro e USP.

Cartaz no SESC Vila Mariana

A performance insiste em permanecer. Ainda hoje, sua terminologia, que começou a se impor na década de 60, esta aí, sendo usada, refletida, atuada, nomeada, qualificando atividades artísticas e antropológicas. A oitava edição do principal evento/encontro de performance da América, o Hemispheric Institute, que aconteceu entre os dias 12 e 19 de janeiro de 2013, na cidade de São Paulo, confirmou isso. O evento se passou no SESC Vila Mariana, SP Escola de Teatro, Praça Roosevelt, na USP (ECA e FAU) e no Teatro Alfredo Mesquita. A FAPESP ajudou na realização do Hemisférico, cuja ideologia foca a performance política.

A abrangência de manifestações do evento foi muito grande. Palestras, apresentações cênicas no teatro do SESC, performances solos, oficinas onde o corpo atuava como mídia ou instrumento de crítica, arte, contestação, reflexão. Seja por um viés mais antropológico ou por um aspecto mais artístico. Ou, ainda, com seus diferentes tipos de vetores, de forças muito misturados. A performance, como uma ação transgressora ou crua e radical, esteve ausente em algumas atividades e essa semeação do dissenso é, por mais que seja contraditório, coerente com a mesma.

A performance deve desafiar as dicotomias das relações políticas porque a política necessita de altos níveis de complexidade e sensibilidade para se desenvolver. Assim, o estudo da performance, capaz de estimular a política, tem que ser debatido. Assim, proponho que, talvez, o tratamento da palavra fluísse melhor – ou seja, fosse utilizada de um modo mais útil e prático – se entendêssemos a performance como uma indisciplina. A professora Dra. Christine Greiner utiliza no seu livro “Corpo – Pistas para estudos indisciplinares” (Ed. Annablume, 2008), o termo ‘indisciplina’ como “estratégia de pesquisa da ordem da radicalidade do trans (referindo-se às famosas redes transdisciplinares)”. É uma sugestão de que uma performance, mais do que o corpo em atividade deliberada, traria uma presença radical, teria uma configuração intensamente diferente de muitas outras minimamente parecidas. A performance deve ser selvagem na sua singularidade, nas suas proposições. Em outras palavras, ela deve ser um canal que nos leve às profundezas de um rio e que possibilita, mesmo que desconfortavelmente, a nossa locomoção e o deslumbramento. No Hemisférico, essa audácia estava em questões vitais como desejos da América, as mestiçagens da identidade, protestos políticos, poéticas da dor. Elas atravessaram e também retiraram muitos limites de nomenclaturas, modos de conviver e de comunicar. Abriram, algumas vezes, descobertas artísticas. Todavia, nem tudo era performance.

Ora, atualmente o corpo como limite de ações e projetos, paradoxalmente, extravasa fronteiras de discursos de ordens e nomenclaturas ainda muito associadas lógicas retrógradas ou conservadoras. Essa capacidade simbólica interessa à performance. Todavia, muitas linhagens, de ideologias diversas, estão muito bem estabelecidas e baseadas em termos que se renovaram morosamente. De modo parecido, a psicoterapeuta e crítica cultural Suely Rolnik, na sua palestra “O Retorno do Corpo-que-sabe”, dada logo após a cerimônia de abertura, alerta: se alguém tiver que, para entrar em qualquer tipo processo, seguir uma metodologia, fuja. A experiência alheia não é a experiência própria. Ainda de acordo com ela, entender fundamentos teóricos como imprescindíveis para poder se afirmar também são autoritarismos que podam nossos impulsos, nossas paixões, nossas subjetividades. Esses são recursos que precisamos para nos emanciparmos. A percepção de que podemos configurar paradigmas próprios para enfrentar cada obstáculo particular e que cada pessoa ou cada coletividade está, a cada momento, com desejos e qualidades distintas. Se a história não se repete, por que soluções, ou suas condições, deveriam ser usadas ipsis verbis? Para satisfazer quem? No Hemisférico, por exemplo, foi comum utilizar-se o nome “América” como a soma de todas as Américas e, por tabela, “americanos”, como todos que sejam de qualquer país dessa extensa América. Uma terminologia que resolve pequenas questões e ignora um bom número de discursos de ordens soberanas. É a performance tentando colocar em dúvida ou se opondo às manifestações de poder homogêneo e ordem.

O 8º Instituto Hemisférico se sentiu à vontade para profanar a já profanada performance. Convidou para se apresentarem no seu evento, tantos em palestras quanto em cena, artistas do teatro. Compartilho muitas das opiniões de Lúcio Agra na entrevista dada a mim (leia em outra página). Uma delas foi a lamentável ausência de performers brasileiros. Se o evento é de performance, é a expressão do corpo para tratar problemas políticos, o teatro pode fazer parte disso. Contudo, muitos dos artistas nacionais convidados não se manifestam e não se auto referem como artistas da performance. Se for para selecionar, a prioridade deveria ter sido outra. Apesar de, por exemplo, ser inspirador e reflexivo a encenação que a importante companhia gaúcha Ói Nóis Aqui Traveiz, seus elementos não são específicos do local/ocasião. Foucault afirmava que um dos pré-requisitos para um acontecimento ser fértil, não autoritário e com abertura para possíveis emancipações e descobertas, é a especificidade do mesmo, mas que seja de modo moderado. Esse equilíbrio não deu certo para alguns convidados.

São questões que poderiam ter sido tratadas durante o evento. A performance brasileira, seja a artística ou a cultural, tem se expandido. A despeito de um encontro panamericano, os desafios dela, suas dificuldades, seus temas não foram muito debatidos. Mas alguns dos seus representantes se apresentaram e puderam assistir e ouvir colegas. Outros performers compareceram apenas como público. Essa experiência, que o encontro proporciona, de troca de sentir e refletir o que é próprio de si, o que é do outro e, assim como as colagens visuais que o Pocha Nostra (grupo de performance do México), apresentou no SESC Vila Mariana, no dia 15/01, o que pode surgir das hibridizações dos dois (ou mais) lados desafiam a todos os americanos.

Na performance Corpo Insurrecto: Ações psicomágicas para um mundo estragado, eles mostraram que as identificações visuais e comportamentais (entre outras) ligadas ao ‘eu’ e o ‘outro’ estão borradas. Por isso, muitas vezes, não justificam sua utilidade. As inquietações com o corpo nesse mundo puderam encontrar posições militantes e formas e modos de apresentações para fomentar a contaminação da ideia e noção de que a performance é um fazer compartilhado por muitos. Percebe-se que é um fazer/dizer que deseja afetar esse mundo com crítica e sensibilidade social. É para cutucar e, por vezes, arregaçar a ferida. Podendo-se formar, parafraseando Chico Buarque, flor com a ferida aberta.

Apesar de ela ser colocada em umas armadilhas, presenciar essa arte, que muitas vezes nega veementemente a mesmice e o cinismo, pode instaurar dúvidas e testemunhar que o comportamento do corpo pode ter muitos deslocamentos culturais e comportamentais. Essa variedade de possibilidades e suas projeções são indispensáveis para a convivência e sustentabilidade social. São os novos entendimentos, ricos de sua contemporaneidade, que dinamizam a busca e elaboração por novas regras e cancelam algumas das velhas. Os realizadores do 8º Instituto mostram-se ocupados com a cultura ao produzir e curar um evento permeado por estéticas sem reconhecimento massivo e que são intensamente carregadas de signos dos problemas e críticas dos seus locais de origem. Um evento que é um jeito de pensar e agir sensível e provocativo às encruzilhadas das culturas e suas emergências sociais.

*Arthur Moreau é bacharel em Comunicação das Artes do Corpo, da PUC-SP, e estudante de Filosofia da USP.