Residências artísticas como experiências relacionais

Botes, Navios ou barquinhos, espaços flutuantes e efêmeros.
Navegar é preciso, viver não é preciso
Quando as bordas viram centro e o centro vira borda
ensaio sobre residencias artísticas como experiencias relacionais

Um texto de Dally Velloso Lemos Schwarz (PPGAV/UFRJ)

Um navio é um pedaço flutuante de espaço, um lugar sem lugar, que existe por si só, que é fechado sobre si mesmo e que ao mesmo tempo é dado à infinitude do mar. E, de porto em porto, de bordo a bordo, de bordel a bordel, um navio vai tão longe como uma colônia em busca dos mais preciosos tesouros que se escondem nos jardins. Perceberemos também que o navio tem sido, na nossa civilização, desde o século dezesseis até os nossos dias, o maior instrumento de desenvolvimento econômico […] e simultaneamente o grande escape da imaginação. O navio é a heterotopia por excelência. Em civilizações sem barcos, esgotam-se os sonhos, e a aventura é substituída pela espionagem, os piratas pelas polícias (FOUCAULT, 1967, p. 7).

O que leva os artistas a fazerem residências? Sair de sua rotina de trabalho para participar de uma experiencia imersiva num tempo espaço diferente? Ficar desconectado de suas redes sociais e rede de e-mails?Sair de suas casas, ateliers, espaços de criação? sair da cidade?Por que se desconectar? Talvez essas perguntas não tenham respostas tão precisas, mas estão me fazendo pensar sobre a experiencia da residencia. Depois de passar por um processo recente na Residência Corpografias da Cia Flux de Ipatinga, resolvi espacializar o pensamento e tentar entender melhor um processo que ainda estou digerindo.

A residência é um formato que está ficando cada vez mais comum na rotina de trabalho e formação dos artistas em espaços diversos e que muitas vezes fogem do campo da arte. Entendê-la como parte do processo de criação é entender as possibilidades da arte contemporânea, da dança contemporânea e do contemporâneo. Esse momento contemporâneo em que a fragmentação do tempo/espaço não se dá somente na  relação entre real e virtual, mas na convergências midiáticas, nos deslocamentos e travessias temporárias e em outras colagens e possibilidades de articular esses dois vetores tão modernos que marcam um tipo de experiencia.

Uma fuga da cidade pode sugerir novas formas de se relacionar e perceber esse modelo de experiencia de relações sociais em que vivemos. A cidade, me parece estar em crise já tem um tempo, e todo esse discurso e resgate dos espaços fora do centro, estão cada vez mais valorizados. A experiencia da residencia Corpografias, através da minha percepção, passou um pouco por esse lugar fora do centro, lugar de bordas. De fuga de um centro tão determinado e habitado pelos discursos hegemônicos e que faz eco em nossos discursos quando falamos e pensamos arte e dança. A hegemonia se encontra no mundo, na história da arte, história da dança, nas instituições e departamentos que são centro e centralizam, e por isso, se encontram também em nossos discursos.

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Saindo do meu centro

Chegar a cidade de Ipatinga, localizada no estado de Minas Gerais e conhecer duas cias de dança (Cia Flux que ofereceu a residencia e a Cia Hibridus, que tem um trabalho histórico na cidade) foi determinante para todo o processo de residência. Entender as articulações entre dança, arte e sociedade na cidade, e quais as ideias e movimentos que habitavam aqueles corpos  me abriu um pouco para o que estaria por vir nesse processo de oito dias de “isolamento do meu mundo” no Sítio Recanto Verde. Esse isolamento de fato se deu, nossos telefones  não tinham sinal, não tínhamos acesso a internet.  Ficamos alienados do mundo cheio de informações em que vivemos, desse fluxo do capital, e muitas vezes nosso corpo reagia no refluxo, como que desintoxicando dessa experiencia urbana, pedindo pela conexão e pelas informações. O tempo parecia só presente e as vezes passado, quando lembrávamos da vida “lá fora”. E uma das coisas paradoxais dessa experiencia era exatamente esse isolamento, provocado por um deslocamento,que me abriu para outro mundo, um mundo interior e muito, mas muito profundo.

Apesar dessa ideia de interior e profundo soarem como um devaneio romântico ultrapassado, o que quero dizer com essa frase clichê é: um mergulho profundo na nossa subjetividade, ou na de cada pessoa que passou por esse processo. Pois, apesar de vivermos nossa solidão, a experiencia urbana,em cidade, favorece e valoriza pouco a solidão. Estar só (realmente só) pode ser um exercício interessante não só para o corpo, mas para refletir sobre o mundo.

A contemporaneidade é uma colagem de tempo-espaço completamente amarrada pelas novas tecnologias de informação. Isso já é parte da construção da nossa subjetividade. Os estudos sobre os usos das tecnologias podem nos provar o quanto elas são incorporadas por nós e fazem parte do que chamamos de “eu”. Esse “eu”, essa identidade, também não deixa de ser um tanto quanto centralizada. Sair do nosso centro, do nosso eixo, é se perder um pouco, e perder essa consciência de peso, equilíbrio  do corpo no espaço. Mas o que proponho nessa reflexão, é que sair do centro e habitar as bordas, pode ser um processo subjetivo potencialmente radical e transformador, tanto para a arte e seus discursos hegemônicos quanto para a vida, com seus discursos normativos. Permitir-se  a essa quebra de rotina.

Quando digo uma experiencia de borda quero dizer que é uma experiencia de transbordar. Um movimento que parte de um centro para a borda. Que se arrisca sair do eixo,  entendendo que isso não é fácil. e se impressiona com aquilo que é até então desconhecido. A borda, é uma dobra, a borda é o limite para novas descobertas. Talvez nesse limite da borda, quando vira uma dobra, amplia o círculo, reverbera, o dilata para alem do seu limite.

 E habitar as bordas é minha desconfiança sobre uma possível quebra da hegemonia. E quebra da hegemonia primeiro em nós mesmos. A descentralização começa quando nos colocamos em cena  ou em processo e tomamos pra nós esse lugar de referencial. Perceba que não perdemos a referencia do eixo, pois ele é estruturado e nos serve como parâmetro. Mas ter a consciência do eixo e partir para o deslocamento, as regiões de borda é um risco prazeroso de descoberta. E nesse sentido, podemos entender que as residencias são abrigos temporários dos artistas, são essas moradas em que não nos fixamos e perdemos um pouco do nosso referencial subjetivo e identitário fixo. Espaços / tempos que ativam outras percepções, ao ponto que nos colocam em contato com outros e nos tiram de nossa rotina, nosso eixo, nossa cidade, nossa vida íntima, nossa realidade.

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A perda do eixo para o encontro com as bordas

A proposta  da 5a edição do projeto Corpografias tinha como temática “o corpo no encontro de si mesmo” e a proposta prática era o compartilhamento de metodologias de cada residente selecionado. Acredito que na residencia compartilhamos não só nossas metodologias, mas compartilhamos espaços, intimidades, quartos, críticas, músicas. Esse compartilhamento que vai além do trabalho profissional, pois é atravessado pelo afeto, é influenciado pelo espaço da casa. Os espaços nos ajudam a construir nossas relações, e isso também tem muito a ver com a quebra espaço/tempo da experiencia em residencia. A cidade é o espaço de relações efêmera, superficiais. De problemas de falta de espaço, do não incentivo ao uso comum e público. Estamos cada vez mais individualistas e individuais. A casa também se reconfigurou com essas mudanças nas relações sociais e o atelier também. Ter um atelier no espaço da cidade é um luxo para muitos artistas. Os atelier coletivos surgem também na tentativa de quebrar com as dificuldades e propor novos compartilhamentos.

Falamos em compartilhamento, construções de rede. Se temos um mundo de informações na internet,é importante que existam canais de organização desse conteúdo que é vasto e pode virar uma biblioteca de babel. E por isso entram os artistas também como mediadores. Aqueles que vão multiplicar aquilo que conhecem, gostam e dessa forma facilitar a construção de mapas afetivos e redes de contatos.  Quando pensamos no artista, para alem de um profissional que tem um oficio, pensamos em um agenciador, como aponta bem o artista Ricardo Basbaum. O artista-etc que está inserido em diversos campos, e que articula e agencia, media. Esse é o artista que conhecemos hoje, na cena contemporânea e que da conta de coisas que vão muito além daquela imagem clássica e romântica do artista solitário. As ferramentas do artista se ampliam, e o campo em que ele atua também

Os artistas envolvidos no Corpografias 2013, cada um com sua bagagem distinta nos mostram que nessa multiplicidade de modos de fazer e pensar, conseguimos criar uma teia bem arrematada. A cada dia se percebiam-se conexões e pontos de contato das pesquisas através de suas metodologias. E perceber isso é entender mais um pouquinho o que é o momento contemporâneo. E insisto nessa afirmação, pois entender o contemporâneo é crucial para entendermos o que estamos produzindo e quais as possibilidades e amplitudes desse momento.

O contemporâneo é um momento critico, um momento de difícil categorização. Ao mesmo tempo que valorizamos a pluralidade, as diferença, percebemos o quanto a metropolização e a globalização criam padrões e formas que se repetem, e o diferente se torna igual. Ou se não é igual, é parecido. Pensar um pouquinho sobre essa possibilidade infinita de reinvenção é também cair na real que nossos limites e barreiras existem. E por isso, volto a dizer, como é interessante se deparar com metodologias que também estão limitadas em seus campos ou suas pesquisas.

Quando nós, artistas, pesquisamos o corpo (seja no dançar, no fazer, no olhar ou no pensar) estamos moldando corpos no mundo. E me deixa muito curiosa pensar que uma residência em que dançamos quase todos os dias, me fizeram pensar e chegar a lugares da critica, do questionamento e do conhecimento equivalente ao estudo feito através de diversas leituras. A valorização da experiência, do trabalho do atelier como trabalho intelectual, de pensamento. Fazer é pensar. Dançar é pensar.

Mas as palavras também não dão conta do recado. Elas são códigos que resumem demais. O que estou tentando defender aqui, é que colocar a mão na massa, que fazer é um tipo de estudo, a prática é tão engrandecedora quanto aquilo que se resume a um “estudo” teórico e mental a qual estamos totalmente submetidos em nossa formação.

Nossas mãos e corpos estão tao alienados nos trabalhos diários ( e isso pode se resumir ao trabalho de cada artista participante) que permanecemos em nossos padrões. Padrões de pensamento, padrões comportamentais. Padrões de movimento. Isso pois é nossa estrutura, nosso lugar de reconhecimento. Nosso centro. Mas e nossas bordas? Nossas potencias de transformação e desdobramentos? Quando será que essas bordas são despertadas? Será que se pegarmos nossos padrões e criarmos a partir deles estaremos nos desdobrando? Acho que sim.

Abrir o campo para além da dança, pois do que pode hoje a dança? Senão se embaralhar nas possibilidades hibridas, mas sem perder também suas referencias próprias. Necessidades de acervos e de reconstruções de historias.  Necessidades de organizar o conteúdo, de linearizar, ou de circundar. O encontro consigo mesmo só existe na relação com o outro.

*Dally Velloso Lemos Schwarz é menstranda em Linguagens Visuais no Programa de Pós Graduação em Artes Visuais na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mora no Rio de Janeiro, local em que realiza suas pesquisas e práticas artísticas relacionadas as questões da imagem, performance e do corpo feminino. Trabalha como arte educadora no Museu de Arte do Rio e é criadora da plataforma Anticorpo (anticorpo.com), site que agrega artistas.