Fim do Galpão do Dirceu é indício de um novo momento na arte teresinense

O bairro do Dirceu – ou o Grande Dirceu, que compreende ele e outros bairros menores ao redor – é quase uma outra cidade dentro da capital do Piauí. Com aproximadamente 190 mil habitantes, já chegou a se cogitar a sua transformação em município, em 1999, por meio de um projeto do então deputado Prado Jr. (PDT). Uma comunidade majoritariamente pobre, com uma cultura e identidade próprias, e que abriga diversas iniciativas artísticas que têm levado o restante do país a ver de outra forma a produção da cidade, desde 2006.

Foi o ano em que o coreógrafo Marcelo Evelin assumiu a direção do teatro João Paulo II e ali deu início ao Centro de Criação do Dirceu, que reunia artistas da cidade, de áreas artísticas e históricos muito diversos, que realizavam ali uma produção muito intensa. Ainda naquele ano, esse agrupamento de artistas passa a se chamar Núcleo do Dirceu. O projeto encerrou-se com o desligamento de Evelin do teatro em 2009, devido a uma nova gestão da Secretaria Municipal de Cultura, que não tinha interesse no trabalho que vinha se desenvolvendo.

Os integrantes do Núcleo desvincularam-se do município e adotaram então uma nova sede, o Galpão do Dirceu, que desde então veio se mantendo como um polo de criação artística no bairro, acolhendo projetos de música, performance, teatro, artes visuais. Um dos projetos voltados diretamente ao bairro foi 1000 Casas, entre 2011 e 2012, em que os artistas criaram ações artísticas interativas que aconteciam nas casas dos moradores da região.

Outra ação que criou um diálogo direto com a comunidade foi o Rasha Show, pesquisa que teve início em 2013, em que os dançarinos de rua da região eram convidados ao Galpão para um ‘racha’ – termo usado para as disputas de dança de rua e também uma gíria no meio gay para se referir a ‘mulher’ – com os artistas residentes do espaço. Era também uma maneira dos artistas do Núcleo, que vinham discutindo amplamente questões de gênero, sexualidade, identidade, dialogarem com uma cultura machista muito presente ali.

Em, 2014, com o final do projeto Curto Circuito, um programa de formação que encerrou também o projeto de manutenção patrocinado pela Petrobras, o nome Núcleo do Dirceu deixa de ser utilizado, e os artistas  passam a se entender não como um grupo ou coletivo, mas como pessoas autônomas ocupando aquele espaço. Hoje, 11 de janeiro de 2016, anunciaram o encerramento do Galpão por meio de uma carta, assinada pelos 10 artistas que trabalhavam ali.

Para mim, que acompanhei a maior parte dessa história de longe, ficou uma sensação de perda, devido à importância histórica e política do espaço e do que foi desenvolvido ali. Mas conversando hoje com a Layane Holanda, uma das artistas do Galpão, a minha percepção mudou em vários aspectos. Um deles é que eu já tinha pensado em fazer uma matéria sobre a falta de fundos de manutenção para espaços culturais, traçar um paralelo com o recente fechamento do Estúdio Ruth Rachou, em São Paulo, abordando principalmente o aspecto financeiro, e ela fez questão de enfatizar que não se tratava disso.

“A gente tá encerrando as atividades – a gente nem usou a palavra ‘fechar’ – porque cada um foi descobrindo outros modos de produção em Teresina. Tem muito mais a ver com o conceito do lugar e com os interesses que cada um já vinha trazendo de fazer outras coisas”, conta Layane.

Não que a questão do dinheiro estivesse resolvida. O espaço não contava com um financiamento permanente, mas se mantinha com parcerias temporárias – já teve parcerias, por exemplo, com a Universidade Federal do Piauí, Itaú Cultural e, recentemente, recebia da Prefeitura uma verba anual que era suficiente para pagar as despesas fixas do local. Os artistas, no entanto, se mantinham com a venda de ingressos, algumas oficinas e outros eventos. “A cada começo de ano era um quebra-cabeças”, define, “mas se a gente tivesse interesse em continuar com o Galpão, poderia ter feito o que sempre fez, se reunir e pensar em estratégias para se manter, que é o que todo mundo que tá à frente de um espaço independente faz”.

A decisão já vinha sendo discutida ao longo do ano passado e coincidiu com um momento novo no cenário artístico da cidade: “Também tem a ver com dar espaço para que outras coisas aconteçam. Pra quem tá fora, talvez seja difícil de saber, mas em Teresina hoje tem muita coisa acontecendo. Muitos artistas, muitas iniciativas legais, novos coletivos, grupos de pesquisa, grupos de estudos, movimentos de ocupação, espaços novos”

Quanto à relação com o bairro, Layane conta que oscilou muito nesse tempo. “Na época do 1000 Casas foi que a gente esteve mais em contato com as pessoas do Dirceu. Ultimamente, nosso contato mais direto era nas oficinas [abertas ao público, parte do projeto Quintal do Galpão, que aconteceu em 2015], mas o nosso público era na maior parte de fora do bairro, a minoria era de lá. O Galpão foi se integrando à paisagem do lugar, que hoje tem escolas de dança, outros espaços culturais”.

É certo que todo esse processo, que se iniciou num teatro público, com financiamento público, e se conclui agora com o fim de um espaço cultural independente, teve uma grande responsabilidade nessa transformação da cidade. E é certo que tem muita coisa ainda a se discutir sobre a manutenção de espaços independentes, principalmente porque eles têm essa capacidade de mudar o seu contexto, com a permanência, com a frequência, com o diálogo, com a formação, com os conflitos.

“Sem arrogância nenhuma, dá pra observar claramente que o nosso trabalho teve uma reverberação. A gente vê aqui hoje muitas iniciativas que acontecem com artistas de várias áreas, em formatos que não são mais o da companhia do estado, do grupo, mas em torno de ideias, de projetos… Tá acontecendo muita coisa legal aqui na cidade”, conta Layane, e eu acredito plenamente. Espero que possamos criar cada vez mais condições para que espaços como o Galpão, que existem no país todo, tenham fôlego para produzir a transformação que produzem.

Deixo aqui um trecho do Rasha Show, que eu considero uma das ações artísticas mais potentes que eu já vi na vida.