Macaquinhos e o ódio ao sexo

[Foto de Gustavo Saulle. Apresentação de Macaquinhos na Galeria Vermelho (SP) em 2014.]

Macaquinhos é um trabalho que, a cada vez que se apresenta, desperta reações muito acaloradas, por parte do público que se interessa e quer saber mais, mas muito frequentemente também manifestações de repúdio. A performance, que surgiu em 2011, e que, segundo o texto de apresentação, “explora a transformação subjetiva do corpo em seu estado limite, através das ações contínuas de paquerar, cutucar, assoprar, procurar e tocar um o rabo do outro”, recentemente foi apresentada na Mostra Sesc Cariri de Culturas.

Algumas imagens feitas por espectadores se espalharam rapidamente em redes sociais e, como era de esperar, houve manifestações que iam desde o deboche e a surpresa até ódio e desprezo.

Pudemos acompanhar outras histórias parecidas recentemente. Em julho do ano passado, foram as imagens de uma intervenção do artista Yuri Tripodi na Igreja da Sé, em São Paulo. As reações foram tantas e de tamanha violência que o artista chegou a cogitar mudar-se do país, devido às ameaças que recebeu.

Em setembro deste ano, imagens da performance Gordura Trans, de Tamíris Spinelli, apresentada na mostra Desfazendo Gênero, em Salvador, tiveram uma repercussão talvez inesperada para os organizadores e a artista. As imagens foram divulgadas pela própria assessoria do evento e, em pouco tempo, haviam dado origem a memes e a diversos comentários, em grande parte, com teor agressivo e violento em relação ao corpo gordo que aparecia nu e coberto em óleo de dendê.

Em todos esses casos, a nudez ou a exposição de partes do corpo parecia ser o principal motivo de repúdio, e o que fazia com que se afirmasse categoricamente que “aquilo não é arte”.

No caso recente de Macaquinhos, a repercussão foi tanta que a organização do evento publicou uma nota, explicando que a apresentação era restrita a maiores de 18 anos e que as imagens foram divulgadas sem o consentimento do Sesc. O curador da mostra, Tomaz de Aquino, também se pronunciou no facebook, reafirmando a importância da escolha da obra. Enviei aos criadores algumas perguntas, que eles responderam coletivamente*.

Como surgiu Macaquinhos?

Macaquinhos foi criado em Teresina, no começo de 2011, a partir de leituras do livro O povo Brasileiro de Darcy Ribeiro. Recebemos um convite para integrar uma mostra de performances e instalações dentro do Museu do Piauí. O processo de criação é bem complexo e vem atravessando vários momentos. Éramos apenas três e iniciamos com uma instrução clara de fazer cocegas no cu um do outro. Nessa fase nos preocupávamos mais com as afetações, sensações e respostas instintivas que eram geradas. Hoje somos cerca de nove pessoas e o trabalho vem desenvolvendo uma outra complexidade que abarca tanto um entendimento coreográfico quanto a construção de uma fisicalidade.

E para além disso, todos esses entendimentos atravessam Macaquinhos também em seus modos de organizar a criação e a produção. Propomos o cu como metáfora do sul do corpo, a ideia de “sul” trazida pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos, o sul que é deslegitimado, renegado e segregado da sociedade que segue os padrões do “norte”, pautado pelo capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. Nosso desafio nesse trabalho é investigar as possibilidades de gerarmos uma epistemologia do sul, ou seja, outros tipos de conhecimentos que não sejam os normatizantes.

Macaquinhos é um processo de busca e interesse. Estamos sempre chegando nele. Sua prática nos instiga e nos põe a questionar os modos de fazê-lo.

Artistas diferentes já integraram o trabalho. Como funciona essa organização? Tem um grupo fixo? Vocês se encontram com frequência? Ensaiam? 

Não nos definimos como um coletivo ou grupo. Somos um agregado de artistas que se juntaram para esse trabalho. Essa formação que se apresentou no Cariri vem ensaiando desde a preparação para o festival MixBrasil em 2014. Quando temos uma apresentação em vista, estabelecemos um ciclo de ensaios intensos. No entanto, mantemos constante pesquisa e discussão ao longo dos anos, independentemente das apresentações. Tivemos como parceiros para nossos ensaios e encontros a Casa Amarela, Como Clube e Galpão do Dirceu e hoje contamos com Casa do Povo, Casa da Luz e Terreyro Coreográfico.

A cada vez que vocês apresentam, sempre se segue alguma polêmica. A polêmica é desejada?

Nosso objetivo não é chocar, mas acreditamos na urgência dos temas que abordamos e que isso pode afetar radicalmente algumas pessoas. Sabemos que a nudez e o próprio corpo humano, de um modo geral, são tabus nessa sociedade que produzimos juntos. Como Macaquinhos aborda uma parte subestimada do corpo humano e para isso lida necessariamente com a nudez, é de se esperar reações de cunho mais conservador.

Eu não vi a performance ao vivo, mas nas fotos ou vídeos tenho a impressão de ver o público muito concentrado assistindo. Em seguida vejo os comentários furiosos na internet e tenho a impressão de que são situações muito diferentes – o que acontece ao vivo e a reverberação que tem depois. É isso mesmo? E, pra vocês, esses dois tipos de reação integram o trabalho de alguma forma?

Com certeza integram. Como artistas, sabemos que não temos o controle da reverberação que o nosso trabalho gera nas pessoas e em certas comunidades, mas certamente essas consequências acabam tornando-se parte do trabalho como um todo.

O material que circula na internet são fragmentos do trabalho que não exprimem a apresentação em si e desprendidos do seu contexto real acabam incitando outras interpretações. Durante a performance, percebemos um ambiente de generosidade e cuidado que não acontece quando a informação vem despedaçada pela rede. De todo modo, esses comentários nos tocam como um elogio às avessas, e tendem a potencializar as questões levantadas pelo trabalho.

Como foi o convite para a Mostra Sesc Cariri? E como foi a recepção do trabalho durante o evento?

Nos inscrevemos através do edital. Tanto a estadia quanto apresentação foram momentos de extremo deleite. Fomos recebidos com carinho e contamos com uma equipe técnica e de produção primorosa e extremamente profissional. Ficamos impressionados com a dimensão da Mostra, bem sucedida em suas intenções de articular dezenas de grupos de todo o país, imprimindo a pluralidade de formatos e estéticas que já lhes são peculiares, e propondo um olhar misto entre as tradições e as contemporaneidades.

Foi a primeira vez que tivemos a oportunidade de fazer um bate-papo com o público logo após a apresentação. O ambiente de abertura e de escuta para os diferentes depoimentos proporcionou um momento que muito nos interessa, que é esse espaço horizontal onde discussões saudáveis podem acontecer, e percebemos que as pessoas também estavam carentes desse tipo de encontro.

“Não é arte”, “é imoral”, “é desperdício de dinheiro público” são alguns dos comentários que eu vi com mais frequência após essa apresentação mais recente. Como vocês responderiam a essas afirmações? É arte? É imoral? É desperdício de dinheiro público? Por quê?

Para nós, tanto o conceito de arte quanto o de cultura são construções sociais em constante transformação e que se dão a partir dos múltiplos agenciamentos que nos constituem. Responder a essas perguntas nos é menos interessante do que criar um campo que possibilita outros entendimentos, em que as pessoas se apropriem desses assuntos da maneira que podem e querem. Curtimos essa potência de gerar as perguntas: É arte? É imoral? É desperdício de dinheiro público?

Como é pra você?

 

* Responderam coletivamente Andrez Ghizze, Caio Cesar, Daniel Barra, Fernanda Vinhas, Luiz Gustavo Fernandes Lopes, Rafael Amambahy, Renata Alcoba e Teresa Moura Neves.