Mostra “evidencia” potência para outros Rumos

O Programa Rumos Dança, que realizou, este último mês de junho, a mostra artística da sua quinta edição (2012/14), merece nosso reconhecimento. Fecha, assim, um ciclo de cinco edições, iniciado em 2000, com o intuito de fomentar a pesquisa na área e também dar conta, em certa escala, das geografias de ideias e corpos que dançam no Brasil e dos pensamentos neles implicados. Aos poucos, contudo, tal iniciativa continuada vem evidenciando a complexidade e a diversidade das “danças contemporâneas brasileiras” e como estas se mostram como excelentes mapas para refletir sobre “uma” produção contemporânea que não está restrita à capital paulista, onde está sediado o Instituto Itaú Cultural.

Nessa edição, apresentaram-se os treze artistas selecionados para pesquisa de criação ao lado da grande novidade, que foi a inclusão de outras três carteiras, com seis bolsas cada uma: dança para crianças, formadores e residência para criadores. Ao se diferenciar desse modo, o programa fez uma escolha com fortes implicações políticas, pois centra forças na relação criação/formação, dada a vitrine de novas tendências que representa e busca difundir como uma produção atual. E trouxe novamente o discurso de promover “a dança que faz pesquisa”, não necessariamente a contemporânea, embora fazer pesquisa tenha se tornado um sinônimo preocupante para quem faz e busca fazer dança contemporânea.

Com “gostinho” de primeira vez, a mostra anunciou outros rumos para as próximas edições, um reinício que carrega a potência da mudança. Diferente das mostras dos anos de 2007 e 2010, concentrou-se, em boa parte, no próprio equipamento cultural do Instituto Itaú Cultural e na Avenida Paulista e suas adjacências (Parque Trianon e Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura), incluindo apenas um local fora desse percurso, o Espaço Casa do Povo, no bairro Bom Retiro.

Dentre os estados brasileiros, o programa Rumos abarcou quase a metade e alcançou boa representatividade regional, com trinta e uma bolsas de pesquisa, contemplando quatro das cinco regiões do País: do Norte, Amazonas e Tocantins; do Nordeste, Maranhão, Piauí, Ceará, Pernambuco e Bahia; do Sudeste, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo; e do Sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. A região centro-oeste foi a única sem nenhum selecionado. Por quê?

Novas carteiras e uma riqueza de amostragem

A carteira de formadores, que bem pode ser entendida como “fomentadores”, foi decisiva para entendermos que uma ação artística não está suspensa no tempo/espaço e que é corpo contextual. A lembrar, os corpos performativos de Marcelo Evelin enquanto Núcleo Dirceu (PI) e Erivelto Viana (MA) fizeram-nos sentir suas dançascontextos a se engendrar e se especializar no labor artístico. Já as falaspensamentos de Marila Velloso (PR), João Fernandes (AM), Adriana Grechi (SP) e Jussara Xavier (SC), partindo das interlocuções com a dança que acontece na Universidade, afetaram-nos para o individual que só se singulariza no coletivo.

Junto a isso, essa edição trouxe uma ação estimuladora, que é a pesquisa focada ou interessada na dança para crianças. Dentre os nomes, um já desenvolve trabalho nessa área há 16 anos: Georgia Lengos (Cia. Balangandança), que apresentou “Ninhos” (SP). Houve também os que nela se iniciam, como é o caso de Elisabete Finger com “Um pedaço do buraco/A piece of a hole” (PR/Berlin); e, ainda, os que vêm redirecionado suas investigações para o público infantil: Airton Tomazzoni (Grupo Experimental de Dança da Cidade) com “Guia Improvável para corpos mutantes” (RS); Margô Assis, Kênia Dias, Renata Ferreira e Tembi Rosa (Dança Multiplex), com “Parquear” (MG); Carolina Galgane (Cia. Lamira), com “Clowndrinhos” (TO); e Suzana Schmidt (Núcleo Quanta) com “EmQuanta” (SP), este último o único pensado para os pequenos e as pequenas de até 4 anos de idade.

Não por acaso, a continuidade desse programa, mesmo enquanto iniciativa “privada” ganhou reconhecimento da área pela força de uma amostragem. Outras procedências singulares, senão mapeadas, precisam ser, pelo menos, bem informadas de sua existência, uma vez que o regional sempre será uma questão necessária para refletir e pensarmos juntos, sem dúvida alguma. Convergiu, nesse assunto, a carteira de residência para criadores ao cumprir o papel da interação entre parecenças e/ou empatias no modo singular de cada artista ser e criar suas danças. Foram eles: Beatriz Sano (SP) e Damires D’Arc (AM), com Toshiyuki Nakata (SP); Clarissa Sacchelli (SP) com Cláudia Müller (RJ); Glaciel Farias (CE) com Lia Rodrigues (RJ); e Layo Bulhão (MA) com Ricardo Marinelli (PR). Esses foram momentos importantes na Mostra, tanto pela abrangência da diversidade investigativa, como pela oportunidade de desestruturar o ranço regionalista que se aprisiona nas raízes identitárias, se quisermos operar na lógica investigativa.

O que ficou claro é que a pesquisa para criadores não foi mesmo, nessa edição, o centro das atenções, o que considero um aspecto positivo uma vez que mexe na estabilidade de um padrão que estava enrijecendo essa carteira. Desde sua terceira edição (2006/07), a pesquisa de criação vinha se consolidando, no momento público do Rumos Dança, para ser a “vitrine da dança contemporânea” com o intuito de mostrar as “novas tendências da dança contemporânea brasileira”, como ecoava e ainda ecoa no discurso dos releases divulgados desse programa.

Há nisso certo compasso com o discurso da coordenação de Artes Cênicas do Instituto, encabeçada por Sonia Sobral, cujos esforços mediadores não têm sido poucos para encontrar/descobrir outras vias possíveis de interlocução. Porém, ao (nos) colocar as alcunhas “vitrine” e “novas tendências”, o programa reforça clichês em uma ambiência típica do discurso de mercado, que parece forjada apenas por economistas que, obviamente, especulam determinada previsão e, por conseguinte, almejam a confirmação de probabilidades já esperadas. Na contramão, a mudança de holofote da mostra de criação para as outras carteiras pode ter, sim, deslocado nossa atenção, levando-nos a inibir tais expectativas para que pudéssemos convivenciar a Mostra como acontecimento de dança.

 Bolsas para criadores consolidados ou com reconhecimento local

Este ano, foram treze bolsas oferecidas para criadores consolidados ou de reconhecimento local, privilegiando propostas sem vínculo institucional, como previa seu edital (o que soa estranho agora, pós-mostra). Dentre eles, foi possível perceber, em certa medida, uma coerência naquilo que foi dito e o que, de fato, foi feito. Alguns à caminho e outros tantos um pouco perdidos. São evidências que funcionam como boas bússolas para navegarmos na processualidade das criações que o programa vem buscando instaurar desde seu lançamento, há mais de uma década.

Destaco alguns enquanto boas configurações considerando a circunstância de amostragem de uma pesquisa: “Sobre Expectativas e Promessas”, de Alejandro Ahmed (SC); “HTML: o corpo hipertexto”, de Luis Ferron, Daniela Dini e Teo Ponciano (SP); “Não-Visíveis-Paisagens”, de Marina Tenório (SP/Berlim); e “A seguir”, de Micheline Torres (RJ). Três trabalhos também apresentaram esboço já com alguma consistência cênica do que pesquisam no corpo, como “Fole”, de/com Michelle Moura (PR); “Ouriço”, de/com Leonardo França (BA); e “BioMashup”, de Cristian Duarte (SP). Já as outras seis pesquisas de criação talvez tenham outras necessidades ainda não percebidas, levando em conta a urgência de prazo da mostra ou mesmo escolhas que foram feitas e que somente no acontecer da Mostra foi/será possível enxergar. Talvez.

Nesse sentido, as recorrências e reincidências da Mostra Rumos Dança podem, de fato, estar fomentando a continuidade, mas carregam junto a isso a evidência de que formar é mais que anunciar tendências e que criação é mais do que só vitrine. Dada a marca que já imprimiu no contexto da dança brasileira e sua produção contemporânea, o Programa Rumos Dança precisa reconhecer-se não apenas na garantia de nomes fortes que pouco surpreendem (principalmente na carteira de criação) e que colocam, nós espectadores e artistas, mais no movimento da constatação que da transformação. É isso que se quer para outros Rumos anunciados?

______________________________________________

* Joubert Arrais – Artista-pesquisador e crítico de dança. Mestre em Dança (UFBA) e bacharel em Comunicação Social/Jornalismo (UFC), com formação/estágio artístico pelo centro em movimento – c.e.m (Lisboa/Portugal). Atualmente é doutorando em Comunicação e Semiótica (PUCSP, Capes/Prosup). Concomitantemente, investiga dança em solos colaborativos artístico-acadêmicos e, em especial, desenvolve o projeto itinerante “Crítica com a Dança” (Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna, 2011). Coordena, desde 2011, comitê temático que discute a produção crítica em dança, na Associação Nacional de Pesquisadores em Dança – ANDA. Escreve no site <enquantodancas.net>.