O capricho das estrelas

Depois de apresentações em duas cidades diferentes (Londres, Paris) os autores de In-I, a actriz francesa Juliette Binoche e o bailarino e coreógrafo do Bangladesh, radicado em Inglaterra, Akram Khan, reservaram-se ao direito de recusar entrevistas. Quando ainda faltam várias datas no calendário (Bruxelas, Roma, Sydney, Luxemburgo), marcadas muito antes de alguém saber, incluindo os próprios, o que resultaria do encontro entre os dois, o que mais se quiser saber carece de recuperação na imprensa publicada na altura das estreias inglesa e francesa.

Seja ou não pelas críticas mistas que receberam – e foram, como se imagina, muitas, nenhuma particularmente entusiasta mas todas elas à procura de factores que ajudassem a ver este espectáculo para lá do carisma das estrelas e apenas como “mais um” espectáculo -, certo é que a máquina de produção por detrás da peça dispensa bem as opiniões da imprensa especializada. Chega-lhe a outra, certamente menos snob e mais emotiva (ou emocional), tal como, diz-se, o público dos grandes teatros co-produtores, que passa ao largo dos preciosismos do discurso sobre a dança contemporânea.

De facto, In-I está para lá de qualquer regra a que estejamos habituados. Ou talvez seja melhor acrescentar a que estejamos habituados quando falamos de dança contemporânea. O seu all-star cast chega-lhe para se sobrepor aos artifícios comuns do meio elitista, feito de regras, provas e testes como é o da dança contemporânea, falsamente democrático.

Durante as dez noites de apresentação em Paris, o passeio da frente do Théâtre de la Ville, viu chegar, algumas horas antes e apesar do frio cortante e da ameaça de neve , vários aspirantes a um bilhete para os quase mil lugares. O público do Théâtre de la Ville talvez não seja exactamente o melhor barómetro de aferição dos riscos aos quais se sujeita a dança contemporânea. Voos mais altos dão-se no Centre Pompidou e verdadeiros cataclismos só na Ménagerie de Verre. O principal palco da cena oficial “serve para” as anuais estreias francesas de Pina Bausch, albergar o contingente da dança flamenga, e mostrar peças menos mediáticas mas nem por isso vendidas como desperdiçáveis. Mas, as sessões estavam esgotadas há muito, os habituais bilhetes de última hora vendidos antecipadamente, e o público do teatro, na sua maioria assinantes que compram bilhetes para a temporada, não escondiam o raro sentimento de julgamento dos intérpretes. Daí que o problema de In-i não esteja na expectativa dos espectadores mas nos limites colocados a si próprios pelos intérpretes.

Uma questão de estratégia?

Se uma actriz mundialmente famosa, conhecida pelos riscos cinematográficos que toma (como os recentes da sua filmografia: Amos Gitai, Hsiao-hsien Hou ou Michael Haneke) procura um coreógrafo com quem possa dar largas a um desejo antigo – “descobrir como [se] podia movimentar em palco e [se] exprimir através do movimento” , conforme conta no programa -, estaremos perante uma reformulação contemporânea do que só esperávamos do universo mítico da dança clássica? Ou eventualmente de um capricho que possa ser desculpado pela aura da vedeta que, depois da afirmação de uma carreira profícua, e com resultados compreensivelmente desiguais, se dá ao luxo de fazer aquilo que mais lhe convém, enquanto o pode? Um olhar atento à ficha técnica permite perceber que Binoche teve aulas de dança não com Khan mas com um professor especial.

Ora, In-i foi apresentado como a articulação entre a França e o Reino Unido no quadro da temporada cultural da Presidência Francesa da União Europeia, mas esta é mais uma questão político-cultural, de tendência notoriamente imperialista, que pode até justificar o facto de uma actriz como Binoche falar em inglês no prestigiado palco-montra que é o Théâtre de la Ville. E mesmo correndo o risco de tal defesa ser entendida como mais uma acha para a fogueira do chauvinismo francês, para o que ela diz, dizê-lo em inglês ce n’est qu’un détail. Mas, na verdade, In-i faz parte de um plano mais vasto, genericamente intitulado Jubilations que procura “através de uma expansão de energia, juntar diferentes expressões num só movimento, com o entusiasmo de um salto em frente”, a saber, uma retrospectiva na Cinemateca Francesa dos seus filmes, e edição de um livro de retratos de realizadores pintados a óleo pela própria, Portraits In-Eyes , que também originou uma exposição.

Ou seja, o espectáculo não é, em toda a sua retórica contemporânea, uma peça de dança “como qualquer outra”. É um capricho, como só se permite às grandes estrelas. Mais a ela que a ele, que quer, precisamente, escapar a essa “prisão” de ser hoje, tragicamente, Binoche. Basta ver as fotografias que fez para a edição de Novembro da versão francesa da Playboy para perceber que Binoche – que também ali dança (e mais convincentemente, dir-se-á) -, quer ser irremediavelmente Juliette: “tendemos a separar o corpo do espírito, o corpo das suas emoções. E eu ambicionava ter coragem para interpretar o meu corpo”, disse na entrevista. Por isso impõe-se a dúvida: Binoche faz o quer ou que o lhe convêm?

Podemos entender este seu desejo inicial de ser coreografada por alguém que costuma colocar em cena uma tradução coreográfica do mundo multicultural no qual vivemos, mas basta citar Bahok, apresentado no CCB em Junho, para perceber que Kham está para o tema como um elefante para uma loja de louças. O coreógrafo não é Philip Kaufman, nem Leos Carax nem muito menos Krzysztof Kieslowski, realizadores que deram a Binoche filmes memoráveis como A Insustentável Leveza do SerOs Amantes da Pont-Neuf Azul. Khan é um veículo para Binoche, dando-lhe para fazer o estritamente necessário de modo a que o capricho se satisfaça. Para si, e citando o New York Times, os benefícios serão outros: “Khan surge como um frugal carreirista [num] espectáculo calculado para sublinhar o seu passado cultural e as suas capacidades coreográficas”. Ou talvez não.

O jornal francês Libération diz que “é impossível ser-se indulgente”. In-i é “naif”. Certo, mais para ela que para ele. Mas talvez possamos entender a aposta de outra forma. Dançar agora, quando ainda pode arriscar não é uma leitura escapista que tenta justificar o que nem os autores conseguem sustentar. Há nele “a descoberta da [sua] vulnerabilidade, da [sua] cólera… de sentimentos que sempre [escondeu] em cena”, tal como conta nas notas de programa, e isso sente-se. As sequências onde se dedica a fazer o que faz melhor – preencher um palco vazio com a força impressiva das suas frases coreográficas – são não só hipnotizantes como rasgam o formalismo característico das suas peças. E há nela um desejo imenso de regressar à liberdade interpretativa dos filmes citados anteriormente e, em particular, o inesquecível Azul, onde o seu rosto, e o seu corpo, carregavam as marcas de uma sexualidade angustiada. Marcas, e desejos, que estão mais presentes no ensaio fotográfico da Playboy que nesta peça sobre o amor.

Encontro de vontades?

A peça tem mais de encontro que de espectáculo. De Binoche e Kram e destes com o artista visual Anish Kapoor, formando um trio de visões que, coincidentemente, existe no mesmo palco mas nem por isso fala a mesma linguagem. Ao desejo inicial da actriz juntou-se a vontade do coreógrafo de “se desfazer do [seu] corpo e entrar [no dela]”. Na base estava a vontade de traduzirem para palco as catorze diferente formas que os antigos gregos usavam para falar de amor. Para esta inevitável paleta sentimental arbitrária Kapoor criou um muro movível de ambição “rothkoniana” e onde as luzes (Michel Hulls) de cores quentes, e a dialogarem com o laranja do vestido dela e o azul turquesa da camisa dele, desenham formas rectilíneas que enformam o par e o sujeitam a um desafio maior: garantir que a explosão de movimentos é contraponto suficiente à aridez do dispositivo cénico e à linearidade dramatúrgica, tendencialmente narrativa. Disse o Guardian: “Não há dúvidas de que Khan e Binoche são fascinantes juntos quando se aventuram em novos territórios. Mas a novidade evade-se, e não há hipóteses de ilusão numa peça que deveria ser de 30 minutos e se estendeu para lá da sua duração natural”.

Quando falamos num encontro entre Binoche e Khan não esperamos, provavelmente, o mesmo tipo de investidas que encontramos em Gustavia, de Mathilde Monnier e La Ribot (apresentado em Vila do Conde em Setembro passado e que chega à Culturgest em Abril 2009), 2008 Vallée da mesma Monnier com o cantor Katherine (Teatro Camões, 2007) ou (Not) a Love Song, de Allan Buffard, com Claudia Triozzi e Vera Mantero (CCB, Abril 2009). Nem mesmo dos vários encontros de Meg Stuart com artistas plásticos, cineastas e coreógrafos, como Benôit Lachambre (Forgeries, Love and other matters, Culturgest, 2005) ou deste com Louise Lecavalier (I is memory, 2007). Ou ainda no exemplo de Anne Teresa de Keersmaeker com Steve Reich (Steve Reich Evening, 2007), e Boris Charmatz com Jeanne Balibar (uma outra actriz de cinema a querer dançar) em La danseuse malade (Culturgest, Maio 2009) ou com Raimund Hoghe (Régi, 2006). E menos ainda nos encontros provocados e promovidos por Jérôme Bel com Vèronique Doisneau, étoile do Ballet de l’Ópera de Paris, e Isabel Torres, do corpo de baile do Teatro Municipal do Rio de Janeiro (Isabel Torres, São Luiz, 2006). Todas estas peças, se centradas no campo coreográfico – e nos últimos anos tendo-se tornado, talvez inconscientemente, um filão -, partilham também, mesmo que assimetricamente, lógicas geracionais, teóricas ou territoriais, que funcionam como elementos de ignição que devolvem ao universo de cada um uma mais-valia evidente. É um discurso que cresce no confronto com um olhar tendencialmente cúmplice.

Seríamos, no entanto, desonestos se não incluíssemos nesta lista pouco exaustiva de espectáculos partilhados as recentes experiências de Akram Khan, nomeadamente com Sidi Larbi Chekaoui (Zero Degrees, CCB, 2006) e Sylvie Guillem (Sacred Monsters, 2006). Em ambos os casos – o primeiro mais do que o segundo – Khan soube criar um espaço de partilha e nele jogar, permanentemente, com o desequilíbrio coreográfico no caso de Zero Degrees, discursivo no caso de Sacred Monsters. Aposta ganha com Guillem que, não sendo “apenas” uma estrela da dança neo-clássica e moderna é alguém que se sabe realmente reinventar (como fez com Russell Maliphant em Push, 2006), e menos conseguida com Cherkaoui que sendo seguramente melhor intérprete que coreógrafo reagia impulsivamente ao virtuosismo fundamentado de Khan com truques afectados por anos de treino na escola flamenga.

Akram Khan é um intérprete de altíssimo nível, o que faz das suas peças de câmara, particularmente aquelas nas quais participa, como as atrás citadas, mais do que um exercício de virtuosismo. A sua consciência corporal, a sua capacidade de transformar o mais simples dos movimentos em explosões coreograficamente irrepreensíveis, a notável noção de presença no espaço e, naturalmente, a sua belíssima figura – que desmonta o exotismo e fetichismo do corpo negro, aproximando-o de uma figura terrena e humanamente frágil -, dão-lhe uma mais valia rara que só a sua propensão para a narrativa – como se viu no equivocado Bahok -, tende a prejudicar.

In-I não é melhor nem pior que os exemplos citados anteriormente. É apenas outra forma de construir um território que deseja ardentemente ser partilhado, mas que não é necessariamente comum. A estrutura da peça é bastante mais simples do que o programa a que se propuseram. Os textos partem, alegadamente, de experiências pessoais, sendo que as dele são, em linguagem politicamente correcta, mais perturbadoras porque tocam em questões raciais. Todas as histórias contadas são sobre desejo, sedução, risco, luxúria, paixão e amor. Quer ele quer ela encontram-se no mesmo palco em busca de uma completude. Ela efabula, num misto de perversidade juvenil e matreirice sábia, sobre os homens que encontra nos cinemas esconsos. Ele vive perturbado por uma “Sarah”, amor juvenil interrompido por razões religiosas. Será essa recordação, e o desejo insistente dela por ele, entre o assédio e a embriaguez, que os atormentará. Ele acordará de um sono pesado, na cama que partilha com ela. Ela persegue-o, falando insistentemente. Ele repudia-a e rompe o espaço em sequências fisicamente exigentes. E é neste jogo de procura do outro que dançam, cumprindo um manual básico de dança contemporânea, feito de gestos bruscos, curtos e que se agigantam para lá de si mesmos, corpos pesados que encontram no movimento uma leveza inesperada, rostos endurecidos que fixam um ponto do outro lado do palco e o atravessam sem piedade, e uma energia superlativa que procura contrariar a brevidade das frases coreográficas.

A sua distinta divisão sequencial, que alterna teatro e dança, faz do conjunto algo eminentemente fragmentado, de tal forma devedor dos interesses dos seus autores – e numa atitude de não identificação do que pertence a quem –, que alimenta a inevitabilidade de um olhar enviesado e tragicamente cumpridor. A confirmação do sabor amargo do falhanço não existe porque a fasquia estava demasiado alta, mas porque aquilo que apresentam é, independentemente de quem são, manifestamente pouco. Não lhes chega o nome e o desejo, e muito menos a comprovação de que Binoche sabe dançar e Khan consegue dizer um texto. Aqui só há lugar para o espaço vazio que ficou por preencher e que permite uma linearidade dramatúrgica que deita por terra a seriedade do que querem fazer. O problema não são os textos, sofríveis é certo, mas o facto de não conseguirem escapar ao gracejo e à evidência da extrema leveza e arbitrariedade de tudo isto. Toda a sequência passada numa casa de banho, uma abjecta mímica sobre os hábitos de higiene é um sintoma mais do que evidente da pressa, da falta de confiança e das dificuldades criativas de In-I, fruto da mais do que provável agenda sobrecarregada de cada um deles. Se quisermos centrar-nos apenas na peça, fugindo a leituras eventualmente superficiais das regras do jogo, basta ver como, na primeira sequência, é ele quem lidera e ela, de mãos que ao longo do espectáculo aprenderão a libertar-se, segue-o crente de que estão em uníssono. Eventualmente na intenção, mas não na interpretação.

O problema da expectativa

Venhamos de onde viermos, do cinema ou da dança, podemos ser radicais como o New York Times, ou radicais como o Libération. Ou podemos tentar encontrar um equilíbrio justo, a meio-termo, provavelmente mais próximo da pretensa humildade dos intérpretes. Os textos escritos por Binoche, e que estiveram na origem da pesquisa são de uma simplicidade desarmante. Demasiado simples, e ingénuos, para uma actriz que sabe ser capaz de fazer da mais complexa das palavras uma virtude. Novamente do Guardian: “a inteligência e a delicadeza que ela transporta para os seus filmes aparece diminuída no palco. A sua voz parece frágil; perigosamente exposta”. Mas qualquer que seja a escolha, é impossível ignorar que nesta história de um casal que se perde a recuperar memórias passadas na tentativa de construção de um caminho comum (simbolizada pelos caminhos de luz na sequência da casa de banho) há uma extraordinária capacidade de ignorar toda e qualquer posição que não seja meramente receptiva e não-interventiva. O que se passa em cena, e o que nos deixam ver, está já previamente definido.

Há no jogo entre Binoche e Khan uma programação consciente que não permite grandes rasgos. Eventualmente uma entoação diferente nas palavras, talvez uma maior abertura de movimentos ou dosagem das expressões faciais, da fixidez dos movimentos, do disfarce dos espaços a branco entre o esforço dela e a cedência dele. Mas apenas um pouco mais do que o cumprimento de um mapa dramaturgicamente solipsista. E certamente algo que seja mais do que o truque de teatro, já no final, de suspender a actriz na parede sem que saibamos exactamente como. A violência psicológica que o leva a tal decisão – longe da descrição afectada e melancólica dos encontros que ambos tiveram anteriormente e foram vertidos para texto – deveria ser o ponto de partida, e não a rarefeita aparição.

Como é apanágio das peças de Khan, os vários estados do amor, alegadamente as catorze palavras gregas, transformam-se em momentos de histriónica poesia, de exacerbada retórica coreográfica, de luxuriante desperdício do fundamental: descobrir, lado a lado, e não um sobrepondo ao outro, as zonas ásperas e menos evidentes do conflito a dois.

O problema da expectativa – e o julgamento que daí advém – não está no cumprimento, ou não, da fasquia colocada pelos espectadores, certamente fascinados (e fetichistas). Está naquilo que eles próprios já fizeram e defendem para si. Porque, no final, In-I, que significa “o que está dentro de nós”, carece de uma solidez criativa para poder ser, como sugeriu a actriz em entrevista, “tão simples e tão complexo quanto isso”.

In-i apresentou-se de 19 a 29 de Novembro no Théâtre de la Ville.

Versão integral do texto publicado no jornal Público a 8 de Dezembro 2008.