O que diz o Festival de Dança do Recife?

Passado o turbilhão de intensas atividades do 12º Festival Internacional de Dança do Recife (11 a 21 de outubro), que reuniu seis espetáculos de cinco companhias internacionais e vinte e quatro trabalhos nacionais, sendo onze deles de Pernambuco, além dos tantos pesquisadores, teóricos, jornalistas e público da dança, o que é que fica na cidade? Muitos foram os discursos que permearam as múltiplas ações do Festival e se desdobraram nos pensamentos dos sujeitos da dança do Recife, um processo iniciado antes mesmo da noite de abertura e, felizmente, sem data marcada para acabar.

É dos ecos destas falas, verbalizadas ou não, que extraio algumas questões, mais para refletir e dar continuidade aos diálogos do que para avaliar o êxito e os equívocos do evento, que, sem dúvida, é um dos principais acontecimentos da dança no Recife, tendo também o mérito de contribuir na busca de um espaço de destaque para a capital pernambucana no cenário nacional e internacional, objetivo este que vem ganhando força nas últimas edições.

Primando pela profissionalização, o Festival do Recife deu um grande salto qualitativo e quantitativo, principalmente depois que entrou (em 2005) no Circuito Brasileiro de Festivais Internacionais de Dança e decidiu substituir a comissão de seleção por um curador único, função assumida pelo cearense Ernesto Gadelha, em 2006 e 2007. Esta modificação, apesar de não livrar os organizadores de antigas críticas sobre segmentação, ajuda a definir o perfil do evento e justificar a inserção ou não de algumas obras na programação, além de colaborar com a pretendida profissionalização do setor.

O Lugar e o Não-Lugar das Tradições na Criação Artística Contemporânea foi o título da primeira mesa-redonda do festival e é um assunto recorrente quando se trata das produções locais, até por causa da pertinência do tema à cena pernambucana de dança, fortemente marcada pela presença da tradição, que aparece nos mais variados formatos, originando resultados cênicos, muitas vezes, tão distintos esteticamente.

A pesquisadora da Unicamp e do projeto Rumos Dança do Itaú Cultural, Lílian Vilela, referindo-se a uma comparação entre Campinas (Lugar teoricamente sem fortes tradições culturais. Será?) e cidades como o Recife (Lotada de tradições populares em todos os cantos. Será?), trouxe um questionamento instigante na sua fala: “Porque é que em alguns lugares o Brasil é mais Brasil? “. E, respondendo com outra pergunta, eu acrescentaria: Como é possível mensurar a brasilidade e o pertencimento cultural de um corpo construído (e ‘sempre inacabado’) em inevitáveis processos de hibridização? E se existem passaportes para permitir trânsito a uns e proibir ou inibir a passagem de outros por determinados assuntos, quem seria responsável por definir as fronteiras e a quem seria dado o poder de conceder os diversos tipos de vistos de permanência? Até que ponto a arte, principalmente a contemporânea, e a dança como linguagem que já possui, por suas especificidades não verbais, meios de transpor fronteiras geográficas, deve ser ideologicamente ‘territorializada’? São perguntas que não podemos perder de vista ( e pretendo explorar mais em textos futuros) e foram muito bem lembradas por Lílian Vilela e pelo professor da Universidade Paris VIII, Armando Menicacci, outro convidado, que, brincando com isso, concedeu a si mesmo um passaporte ‘brasileiro’.

Outra questão que perpassou os discursos do festival foi a ética, principalmente no que se refere à pesquisa. Seja ela prática ou teórica, foi ressaltada a necessidade do pesquisador adotar uma postura responsável com suas fontes de pesquisa e também com a construção da história. O registro coreográfico, iconográfico ou escrito merece uma atenção especial e respeitosa para não correr o risco de praticar generalizações estéreis; emitir opiniões equivocadas ou dúbias; e realizar irresponsáveis omissões. A memória da e na dança esteve presente no debate sob os títulos de duas mesas-redondas: O Corpo Dançante: Lugar de Memória e Esquecimento; e Dança e Memória: o que e para que preservar? Com a lembrança tão “em voga”, não convidar nenhum dos pesquisadores (Valéria Vicente, Roberta Ramos, Liana Gesteira ou outro membro da equipe) do Acervo Recordança, pioneiro projeto de memória da dança pernambucana, que realizou um valioso trabalho de mapeamento da dança cênica local (1970 a 2000) e tem servido de modelo para historiadores de outros Estados e países, é, no mínimo, um “esquecimento estranho” e difícil de explicar. Felizmente, estes desencontros oficiais foram minimizados pelos férteis encontros informais nos intervalos e corredores do Festival, que, somente com este esforço, conseguiu cumprir sua função de intercâmbio.

Isso me faz retornar a questão da ética e sua importância em um evento que se inscreve com pretensão de democracia em um universo de diversidade, e tendo um público igualmente diverso a conquistar e satisfazer. Aliás, a falta de educação de boa parte do público durante a maratona de espetáculos é um dado para refletirmos e tentarmos sanar. Todas essas observações levam a um questionamento: qual é o papel do Festival de Dança do Recife (agora acrescido com o peso do internacional do seu novo título)? Ele vem cumprindo sua missão? Deixo aqui estas perguntas, como ‘norte’ das minhas considerações e impressões, que agora partilho.

Para o objetivo de democratização proposto no discurso do festival se concretizar, faltou uma maior atenção do coordenador geral Arnaldo Siqueira, profundo conhecedor da realidade da dança local, no sentido de nivelar o tratamento, as condições (inclui-se aqui também o quesito “remuneração”) e o espaço dado aos artistas e outros profissionais “da terra” e os “de outras terras”. A ausência de pesquisadores/teóricos de dança de Pernambuco (sim, eles existem) inibiu o tão produtivo intercâmbio gerado em oportunidades como essa, e foi agravada pela inconveniente escolha de datas e horários das mesas (no feriadão: dias 11, 12 e 13 de outubro), que inclusive “chocava” com o período de oficinas. Aliás, os horários precisam ser repensados, assim como as estratégias de comunicação, não só a relação com a imprensa (entendendo a especificidade dos veículos e sabendo aproveitar melhor os espaços que lhe são oferecidos), mas também a divulgação de suas atividades junto aos profissionais da dança local, principalmente no que diz respeito às ações formativas.

A excelente experiência do Dança Falada, “bate-papo” entre criadores e público, realizada sempre na tarde seguinte à apresentação do espetáculo, poderia ser melhor divulgada através da locução nos próprios teatros, por exemplo, e, assim, ser mais produtiva. A presença dos pesquisadores convidados também poderia ser utilizada como fomento deste diálogos, sendo a eles designada a tarefa de acompanhar e comentar alguns dos espetáculos no espaço do Dança Falada (ficam aqui registradas as sugestões).

Eliana Rodrigues, professora da UFBA, retomando o tema da mesa que compôs, citou “a reinvenção da tradição popular na contemporaneidade”, mencionando o lugar que estes elementos podem encontrar na dança contemporânea. E por falar em lugar e não-lugar, olhando para o cenário da dança cênica recifense e observando também alguns exemplos citados pelos pesquisadores convidados, preocupa-me pensar no espaço existente para os que não estão nem aqui nem lá, mas em um entre-lugar, que nem se inscreve na tradição nem se encaixa no que se convencionou chamar de dança contemporânea, um título que foi atrelado a fórmulas e modelos, contrariando a própria natureza deste fazer, que tem a liberdade como uma das suas principais características.

Poderia citar aqui inúmeros exemplos desta condição nas experiências originadas no Recife, mas vou me deter somente a um ‘terreno’ onde tenho ‘permissão de trânsito’ (Será?). Para ilustrar esta situação, cito a dança ou metodologia brasílica, instituída e largamente difundida em Recife desde 1977 pelo Balé Popular do Recife a partir de uma pesquisa nos autos e folguedos do Nordeste brasileiro, e os tantos desdobramentos que ela gerou, como o trabalho de Ângelo Madureira e Ana Catarina Vieira (presente na edição 2006 do Festival) e o espetáculo Preto no Branco, da Cia. de Dança Artefolia (que fez parte da edição deste ano). Ao contrário das criações de Ângelo e Ana Catarina, que já encontraram na dança contemporânea o seu lugar; e, apesar de ter tido a interferência do coreógrafo de dança contemporânea, Ivaldo Mendonça, o trabalho da Artefolia segue outro caminho, opta pela dinâmica do método brasílica e fala de frevo em corpos moldados nas técnicas das danças populares nordestinas. Mesmo tendo a mesma matéria-prima do primeiro exemplo como ponto de partida, Preto no Branco está neste entre-lugar e, se aqui ainda conseguiu espaço na programação, em eventos de outros lugares, supostamente menos ligados às tradições populares, talvez não conseguisse nenhuma brecha. Convém pensar, então: para que e para quem dançamos? E porque razão a dança precisa de “sobrenome”?

O que me interessa não é a busca de uma classificação, dizer se é isso ou aquilo na verdade é o que menos importa até mesmo porque, concordo com o depoimento da crítica e curadora de artes plásticas Cristiana Tejo (outra convidada de uma das mesas-redondas do festival) quando diz que “não nos cabe tentar medir o índice de contemporaneidade das obras”, como parecem querer alguns eventos e editais da área. O que não devemos permitir é que coloquem em dúvida a qualidade de um trabalho deste “entre-lugar”, somente porque o curador ou programador, desconhecendo aqueles códigos, não consegue ‘enquadrar’ o espetáculo ou coreografia na ‘gaveta’ que ele criou.

Por incrível que pareça, os que beberam nas tradições culturais brasileiras parecem incomodar mais do que os que buscaram fontes populares internacionais, como a street dance e o hip hop em suas composições coreográficas. E no Festival do Recife não foi diferente, talvez sejam resquícios de um comportamento de colonizado, que privilegia sempre o importado, o “de fora”, em detrimento do local, o “de dentro”. Talvez seja preconceito camuflado dos que insistem em enxergar a tradição como oposto da modernidade e o popular como contrário do “culto”.

Um festival deste porte acaba funcionando como espelho e todas estas questões se vêem nele refletidas. Dos onze espetáculos de Recife, por exemplo, apenas duas companhias (o Grupo Experimental, com Conceição e o já referido espetáculo Preto no Branco, da Cia. Artefolia) e um solo (Por si só, de Helder Vasconcelos) tiveram espaço na programação dos teatros; os outros (coreografias e espetáculos de curta duração) foram destinados exclusivamente aos espaços alternativos do evento e em horários pouco atrativos para o público em geral. Ao mesmo tempo, nenhuma das nove apresentações de obras internacionais aconteceu nas periferias e dos grupos nacionais, somente o trabalho de Vanilton Lakka, de Uberlândia, Minas Gerais, e o da Focus Cia. de Dança, do Rio de Janeiro, foram vistos na programação descentralizada.

A proposta de descentralização do Festival, presente no discurso dos seus realizadores (leia-se Prefeitura do Recife), coordenadores, curador; precisa transcender seu significado geográfico. Até mesmo porque, como alertou o coreógrafo e bailarino Vanilton Lakka, durante a avaliação do 12 Festival Internacional de Dança do Recife, esta é só uma “das direções para pensar a descentralização, outra direção interessante a ser seguida é a descentralização da idéia de dança, porque nós fomos acostumados a pensar em dança como sinônimo de ballet clássico e, conseqüentemente a reconhecer como dança contemporânea as produções que partiram daí passando pela dança moderna como um desdobramento histórico linear do modelo ocidental de dança. Quando a gente começa a pensar em hip hop, em parkour ou nas danças populares que tem aqui (no Recife), elas tem um tipo de codificação diferente, que nem sempre as pessoas que estão a frente dos festivais e editais conseguem entender, interagir, porque não têm acesso a estes códigos”. Conhecer e reconhecer estes códigos como legítimos e oferecer espaço para eles é um bom caminho para o Festival Internacional de Dança do Recife avançar na perspectiva da descentralização, considerando também a direção conceitual e ideológica do termo, o que não deixa de ser um exercício político.

Passado o Festival, o que é que fica? O que é que ficou?

Ficou a emoção da dança-teatro da companhia alemã Toula Limnaios, com seu, para muitos considerado perfeito, Life is Perfect, que apresenta de maneira contundente, e com uma interpretação precisa, um “quadro de histórias da vida real se equilibrando na tênue linha entre momentos de felicidade e armadilhas da realidade”. Ficou a imagem dos espetáculos pernambucanos, Conceição, Preto no Branco e Por si só, lotando teatros, encantando platéias e confirmando a força da tradição (colocada em cena de formas distintas) e a qualidade das produções locais. Ficou a força de Vanilton Lakka e seu interativo Outras Partes, quebrando preconceitos, abrindo possibilidades para outras matrizes corporais nas criações contemporâneas e levando a dança de rua (e suas modalidades) para o centro das discussões. Ficou a lembrança pulsante das celebrações e festejos, do cavalo-marinho improvisado do bailarino alemão Elik Niv, ao som dos versos de Helder Vasconcelos e um animado coro artístico multinacional e multicultural, brindando a convivência produtiva da diversidade. Ficou a riqueza da rede de pensamentos e informações, a partir de agora conectados, o encontro das afinidades. Ficaram o verbo compartilhar e a virtude da generosidade como lições. Ficaram a ética e a descentralização como palavras de ordem. E, principalmente, ficou a fé no diálogo como estratégia de construção coletiva de um evento, que exercitando mais a escuta e valorizando as pessoas e produções locais, só tende a crescer.

Se por um lado, um festival não precisa “agradar a gregos e troianos”, por outro, não deve sucumbir às vaidades pessoais nem ser “de um dono”. O que deve ficar de um Festival? O Festival deve ficar. Como algo que pertence à cidade e que a dança do Recife, mesmo em sua peculiar diversidade, possa nele se reconhecer. Não existem respostas prontas, mas as perguntas podem levar a algumas pistas. Ficar atento a elas é o dever dos que assumem a tarefa da coordenação ou a missão da curadoria, mas também é obrigação de todos os sujeitos da dança. Que fiquem os aprendizados, o desejo de crescimento e a vontade de unir forças e avançar…

O que fica de um festival? O que ficou do 12º Festival Internacional de Dança do Recife?