Oscar Malta e o corpo impossível

Na geografia da arte contemporânea, as setas parecem apontar a mesma direção: o caminho das múltiplas possibilidades em que a “mistura” é matéria prima e os resultados são sempre imprevisíveis. Esta hibridização fornece novos relevos a cada dia, em uma velocidade típica desta época. Outra questão imposta por este tempo é a trajetória exclusiva de cada artista, não pela busca e invenção do novo, mas pelo intenso tráfego de informações que acaba tornando ímpar, único, o repertório de cada criador, ainda que permaneça alinhado a alguns pensamentos globais. São muitas as escolhas e as possíveis combinações neste terreno onde o cruzamento de linguagens artísticas não é uma probabilidade e sim o lugar onde se geram as produções contemporâneas.

Para chegar a videodança, por exemplo, o designer e videomaker pernambucano Oscar Malta partiu do seu vasto conhecimento técnico na área de cinema e vídeo, adquirido ao longo de anos de experiência atuando como cinegrafista, diretor de arte, diretor de fotografia e realizador, principalmente de documentários. Mas o percurso que pode parecer óbvio à primeira vista, na verdade, revela a ligação anterior de Malta com o universo da dança. “Talvez algumas travas sociais tenham impedido que eu me dedicasse à prática da dança em si. Não por limitações físicas, já que sempre pratiquei esportes. Então, depois de muito tempo trabalhando com audiovisual, percebi que fazer dança no vídeo ou fazer videodança também era uma forma de dançar” – conta o videomaker, que pelo fato de ter uma irmã bailarina clássica, e muitos outros fatores, sempre foi espectador assíduo das montagens de dança do Recife.

Uma valsa de Strauss é título e trilha da primeira experiência em videodança deste criador, datada de 2002. Em Vida de artista, bailarinos solistas e corpo de baile são interpretados por raspas de lápis grafite, que apresentam uma coreografia de inspiração nos ballet’s clássicos de repertório. Pensado como videoarte por seus realizadores Oscar Malta e Miguel Falcão, Vida de Artista ganhou o Festival Mundial do Minuto (São Paulo), em 2002. Mas só depois de aprofundar sua pesquisa em videodança, Malta passou a classificar neste estilo sua produção de estréia.

O interesse em trabalhar com arte e tecnologia levou Malta a enveredar pelo formato da videoarte, e como dança e vídeo eram as realidades mais próximas dele, suas produções, mesmo as feitas sem esta intenção explícita, resultaram em videodanças ou em tentativas de hibridizição destas duas linguagens. Em 2004, montou e cumpriu uma curta temporada no Recife, com o espetáculo multimídia Play, um híbrido de dança e vídeo, fruto de parcerias com coreógrafos pernambucanos. Inicialmente com Ivaldo Mendonça, depois com Kleber Lourenço, que assina a coreografia de Play, e Viviane Madureira, uma das intérpretes-criadoras do projeto. Do registro dos ensaios e apresentações deste espetáculo, surgiram mais três experimentos de videodança: Caixa 1.0, Grafos A1 e Grafos A2. “As imagens, gravadas antes ou captadas na hora funcionavam como bailarinos, dançando com os bailarinos humanos. Depois da temporada de Play, conheci o trabalho da Compagnie Mulleras (www.mulleras.com) que investiga exatamente este tipo de combinação, só que tendo a Internet como palco principal” – conta Malta.

Uma das mais recentes videodanças produzida por ele em parceria com seus alunos, e batizada de Origem (2006), foi selecionada e exibida na Sétima Mostra de Videodança do Festival de Cinema de Thessaloniki, na Grécia, que aconteceu simultaneamente nas cidades de Atenas e Thessaloniki, entre os dias 18 e 25 de maio. Com três minutos de duração, Origem foi concebida durante a Oficina de Videoarte que Oscar Malta orientou em julho do ano passado (2006), no Festival de Inverno em Garanhuns, município do interior de Pernambuco. Apesar de ser uma criação coletiva, teve como ponto de partida a pesquisa em videodança intitulada Skin (pele) de autoria de Malta, em desenvolvimento há dois anos. Explorando as variações da definição de pele, ele enumera em ordem crescente as tantas peles que vestem os seres humanos. A terra, a casa, a roupa, a “personagem” e a própria pele são descritas como camadas desta pele maior que nos envolve, muitas vezes nos camufla, e sempre interfere na movimentação e na atitude das pessoas, de acordo com os estudos de Malta.

Uma das minhas alunas da oficina, a médica Fátima Monteiro, tinha uma filha bailarina participando da oficina de dança contemporânea do coreógrafo Raimundo Branco na mesma época e local. Então propus que a filha se juntasse à mãe e aos outros alunos para construir uma videodança. Origem é um vídeo de um vídeo projetado no ‘suporte corpo’ da bailarina Marcela Monteiro. Mas não considero esta videodança um produto finalizado e sim um estágio da pesquisa, um trabalho ainda em processo”- explica Oscar Malta.

O tema do nascimento, que aparece no tom biográfico de Origem é assunto recorrente nas experimentações do videomaker. E o fato dos projetos surgirem durante cursos ou oficinas também é coisa que se repete na trajetória de Malta. Foi assim com Aminioptico (2003), um vídeo que questiona as relações de gênero, afetividade e os diversos significados do verbo nascer, sobrepondo imagens intra-uterinas de um feto em movimento (vídeo de ultra-sonografias) e a dança contemporânea de corpos adultos, mesclada com a capoeira. Além de participar do Gramado Cine-vídeo, Festival Cinco Minutos (Bahia) e Mostra Oi Contemporâneo (Rio de Janeiro), esta videodança conquistou o primeiro lugar na categoria experimental do Festival de Vídeo do Recife, em 2003.

Produzida, montada e exibida no tempo recorde de um único dia, Aminioptico surgiu durante um encontro de videodança coordenado por Leonel Brum, e realizado em Recife em uma parceria do Spa das Artes (Semana de Artes visuais do Recife) e do Festival de Dança. Oscar comenta que “na equipe que participou do trabalho todos eram profissionais de artes-cênicas” e da área audiovisual ele era o único representante. O que nos causa certa estranheza já que Recife é um efervescente pólo de produção audiovisual pelo menos desde a década de 90. Aliás, já nesta época foi gravado o vídeo Elástico (1993), dirigido pelo cineasta Lírio Ferreira (Cartola-música para os olhos, 2007; Baile Perfumado,1997,etc) para a extinta Cia. de dança Cais do Corpo (bailarinas: Márcia Tinoco e Maria Eduarda Gusmão), que é considerado a primeira videodança de Pernambuco.

No entanto, de lá pra cá, pouca coisa se modificou neste cenário e um hiato ainda parece separar os artistas da dança dos de cinema e vídeo, sendo raras trajetórias como a de Oscar Malta. Ao que tudo indica, estreitar estas distâncias é condição imprescindível para sedimentar e fertilizar o terreno da videodança em Pernambuco. Não importando de onde brotem as iniciativas, se dos coreógrafos, dos videomaker’s ou até dos artistas plásticos, todos ganham, mesmo que propostas artísticas como estas estejam longe do que podemos chamar de “comercial”, é assim que a arte contemporânea consegue expandir seu campo e a dança ganhar mais mobilidade, ampliando suas possibilidades.

Apesar de não existir uma definição clara para este formato e o conceito de videodança estar ainda em formação, Malta arrisca dizer “que para ser assim considerado, o trabalho tem que estar finalizado no suporte vídeo e trazer questionamentos sobre tempo e espaço”. Ele não sabe explicar exatamente o que o motiva, além da sua necessidade pessoal de expressão (que só as palavras não conseguem satisfazer), mas não hesita em afirmar que o que mais o fascina é a possibilidade de construir o corpo impossível (ou seria melhor dizer: o corpo pouco provável…), de animar corpos “não-necessariamente humanos” e lançar suas perguntas em forma de dança. E, além de tudo isso, poder fazer suas idéias facilmente correrem o mundo. Aliás, na opinião dele, a busca da videodança é exatamente esta composição do corpo impossível que só o vídeo pode tornar possível. “Esta foi a maneira que encontrei para dançar, apesar de eu achar que ainda vou fazer isso, no sentido mais literal, ou seja, com meu próprio corpo”- afirma convincente. Enquanto isso, acompanhemos com atenção seus passos, seguindo a trilha das suas videodanças, e torcendo para que outros artistas pernambucanos também escolham este caminho.