Para fazer diferença

Minha atuação como produtor, palestrante, avaliador ou mesmo como convidado ou participante em festivais e eventos de dança pelo Brasil sempre me despertou uma inquietação. E depois que os dias de intensa programação se acabam, o que resta? Depois que o circo levanta a lona, fica-se aguardando o seu retorno na próxima temporada?

Esta preocupação vem me atormentando um pouco mais do que o normal, principalmente porque a maioria dos eventos vem sendo realizada com verbas públicas, especialmente das leis de incentivo. Por isso, mais do que uma inflacionada programação muitas vezes traduzida em números de espetáculos e participantes, ando interessado mais no que fica ou poderia ficar, seja materialmente ou em termos de estímulo, pensamento e inquietude local e suas reverberações.

Foi sob este prisma que lembro de algumas iniciativas como a dos Novíssimos, no Panorama de Dança (RJ), que já há alguns anos vem abrindo espaço para fomentar a produção de jovens criadores em dança contemporânea. Ou ainda de Marcelo Gabriel no pomposo Santa Isabel, durante o Festival de Dança de Recife, em 2005, ameaçando senhoras bem vestidas com cacos de vidro. É neste sentido que gostaria de tecer algumas percepções quanto à Bienal de Dança do Ceará e observar os possíveis resíduos que tal ação revelou.

Estive na Bienal pela primeira vez na sua terceira edição e, já na época, em 2001, escrevi um artigo intitulado O Pulo do Gato, quando o Idança, embrionário, ficava hospedado no site da Antares. Neste artigo colocava minha positiva impressão com o ambiente em torno da Bienal, com o Colégio de Dança, Alpendre, seminários, intercâmbios.

Passados seis anos, ainda que algumas iniciativas como Colégio de Dança, infelizmente, não existam mais, o ambiente de Fortaleza mais uma vez dá sinal de superar a efemeridade do evento e transformá-lo em um acontecimento que perdura para além da sua programação. O movimento nesta direção se configurou já bem antes da abertura oficial, nas residências, cursos e oficinas que foram realizadas desde o início de outubro. Ações importantes tanto pelo tempo de duração (que não se caracterizaram como fast food) quanto pelas temáticas escolhidas. Foi assim com Yann Marussich e sua Procissão Pagã, com a oficina Tradição e contemporaneidade, de Marcelo Evelin, e também com os cursos Desenvolvimento de uma linguagem de dança, partindo das danças populares brasileiras, com Ângelo Madureira e Ana Catarina Vieira, e Música e Movimento, com Tato Taborda.

Além destas ações, o Seminário A dança como área de conhecimento antecedeu a programação de espetáculos e buscou refletir quanto à produção de saberes na/da dança e à implantação de um curso de graduação em dança. O Seminário do qual fiz parte, contou com a presença de Silvia Sotter, Leda Muhana, Fernando Passos, Christine Greiner, Rosa Primo, com a provocadora e articuladora mediação de Marcos Moraes. A discussão, com intensa participação da comunidade de dança local, evidenciou a preocupação com o formato de tal curso, suas implicações com a realidade da dança no Ceará e o seu conseqüente perfil.

Depois deste “aquecimento”, a temperatura ainda se elevou, no melhor sentido da metáfora. Na abertura da programação de espetáculos, a bailarina do corpo de baile do Teatro Municipal do Rio de Janeiro Isabel Torres subiu ao palco do Teatro José de Alencar, apresentando a obra criada por Jerôme Bel, que leva seu próprio nome Isabel Torres. A peça, repleta de ironia e sensibilidade mexeu com o público que não encontrou em cena o esperado universo dos balés de repertório como se está habituado a ver. Frente à obra, o público não assistiu passivamente e não só cantou junto o funk que embalava a intérprete em cena, como levantou das cadeiras e também dançou.

E, se o público mergulhou junto na história de Isabel, também conferiu com atenção a doída e comovente performance de Vera Sala no MAC (Museu de Arte Contemporânea). Ali no espaço pouco tradicional para se dançar, o público se permitiu dividir esta experiência com a intérprete de Impermanências. Essas impressões e muitas outras provocações que povoaram conversas de corredores e intervalos ganharam espaço certo nos bate-papos com coreógrafos. Os Bons encontros garantiram espaço diário para criadores e platéia dialogarem, sob a competente e generosa condução do crítico e professor Roberto Pereira. Os encontros com os coreógrafos também sacudiram a poeira nas aulas e workshops que se seguiram. Um bailarino local que depois de acompanhar os debates e participar da aula com Lia Rodrigues comentava: “nunca tinha pensado o que eu queria com a minha dança, agora vou embora com isso na cabeça…”

Além deste pulsante cenário de troca de informações, a Bienal ainda teve outras conquistas nesta edição, como a ampliação da rede de instituições envolvidas, seja ampliando espaços, como público e atividades. Entre eles o BNB (Banco do Nordeste), o Sesc e o Teatro das Marias, este último promovendo acolhedores e instigantes momentos, sob a hospitalidade de Valéria Pinheiro e sua trupe, a cada final de noite. Mas esta rede se estendeu para além da capital, como já vinha ocorrendo em edições anteriores. E a programação da Bienal chegou este ano a outros lugares, como Sobral, Paracuru, Crato, Juazeiro do Norte e Nova Olinda.

Mas estas redes só se tornaram possíveis porque se estabeleceram redes de pessoas. Senti que o evento não acontecia para a comunidade de dança da cidade, mas com a comunidade de dança. A articulação de Andréa Bardawil, com ações simples e eficazes, incorporou dez profissionais da cidade (de diferentes linhas estéticas e correntes artísticas) para assumirem a função de articuladores junto à equipe dirigida por David Linhares. Pessoas da área da dança (coreógrafos, bailarinos ou pesquisadores), que se reuniram mensalmente, trocando idéias, elaborando ações e traçando estratégias, como Valéria Pinheiro, Sílvia Moura, Cláudia Pires, Graça Martins, Thaís Gonçalves e Raimundo Severo Jr.

Isso não significa um cenário sem tensões e contradições, mas um cenário que vem fazendo das diferenças uma possibilidade de construção e diálogo. E estas ações fazem a diferença, quando circo chega e vai embora. E mais do que isto, imprime força para que ele volte para apenas passar.