Para ficar mais perto

Dizem que a obra de arte só se completa no espectador, só fica pronta (se é que fica) no encontro do artista com o público. Por outro lado, os ditos populares e alguns escritores como o poeta Ezra Pound já anunciaram que “o artista é a antena da humanidade”, ou seja, está sempre um passo à frente, assumindo o ofício de captar e adiantar o futuro. Talvez essa questão de múltiplas temporalidades, tão comum nos dias de hoje, possa justificar o hiato persistente entre o público e a dança contemporânea. Talvez seja outro o tempo do artista e em um ‘porvir’ possa enfim se dar esse encontro de ‘completude’. Mas é freqüente ouvirmos queixas dos coreógrafos que se dedicam a esta linguagem – de inúmeros sotaques – se dizendo incompreendidos. Explicações desta distância pelo lado intelectual são comuns. Apesar de ser uma saída mais fácil, atitudes assim camuflam um preconceito (mesmo que inconsciente): subestimando a capacidade de entendimento do público leigo, os criadores colocam-se em uma posição de superioridade em relação aos espectadores. Felizmente, como a inquietude também costuma ser característica dos artistas, este distanciamento “justificado” é uma regra geral, mas que tem muitas exceções.

Se é no cotidiano que geralmente os criadores buscam inspiração, também é dele que saem os preciosos mecanismos de aproximação entre a dança contemporânea e o seu público. Alguns criadores da dança contemporânea, incomodados com o afastamento vigente, construíram trabalhos que são verdadeiras pontes, ainda que não seja este o objetivo primeiro das suas criações. Esse é o caso de Cláudia Müller e o seu ‘Dança Contemporânea em Domicílio’. “Acredito que o estranhamento se dá pelo desconhecimento. Não fiz o projeto com o objetivo de me aproximar do público, mas me agrada a idéia de poder ir a lugares que habitualmente não iria, e ter um público que normalmente não teria. Eu gosto de público que tem rosto” – explica a artista paulista, radicada no Rio de Janeiro.

Buscando um diálogo com a cidade, mais com as pessoas e o seu cotidiano do que com a arquitetura, ela encontrou a idéia de fazer entregas de dança contemporânea em espaços públicos e propôs ao festival carioca ‘Dança em Trânsito’, sendo aceita em 2004 para os seus primeiros experimentos. “Já tinha visto vários espetáculos que são simplesmente transportados de um ambiente para o outro. Vão para as ruas do mesmo jeito que estavam no palco. E como acho que isso não funciona assim, resolvi investigar outras possibilidades de aproveitamento do espaço e principalmente de diálogo com quem vai assistir”– conta Cláudia. No formato inicial uma trilha sonora acompanhava a coreografia e as entregas eram todas encomendadas pelo contratante. Já no ano seguinte, a proposta ganhou um figurino próprio e a sonorização foi substituída por trechos de um texto dito pela performer e chamado “O retrato do artista enquanto um trabalhador”, do belga Dieter Lesage (Pelos vistos este problema do não reconhecimento do artista como trabalhador não é só do Brasil…). Como indica o próprio título, o artigo lança questionamentos sobre arte e mercado: “Você é um artista. Isso significa que você não faz arte por dinheiro. Isso é o que algumas pessoas pensam [1]“. Questões que serviram como uma luva para refletir as inquietações que motivaram Cláudia Muller a criar esta performance. “Será que a arte é uma mercadoria, será que é possível entregar dança contemporânea como se entregam outros produtos?” – pensou a criadora-intérprete e partiu em busca de respostas, utilizando a matéria-prima que tinha: seu corpo, sua movimentação.

“A maioria das pessoas que recebe a entrega, faz perguntas, quer conversar sobre arte e dança contemporânea, quer saber onde pode assistir ou onde pode fazer aulas” – conta Cláudia. E olha que, segundo ela, muitas das pessoas nunca tinham visto nada de dança contemporânea e algumas sequer tinham visto um espetáculo de dança. Se essa não era a intenção declarada da autora, foi, pelo menos, um resultado muito bem vindo ao seu trabalho. Os pedidos são feitos por telefone e sempre tem que haver patrocinadores para que o destinatário possa receber gratuitamente o inusitado presente. O projeto já passou por inúmeras cidades nos mais variados estados brasileiros[2], e fez inclusive uma temporada na Espanha em dezembro do ano passado. Cláudia diz que “para esse tipo de trabalho além do preparo físico, também é preciso de um bom preparo emocional. Porque em uma mesma tarde posso ter que me apresentar na UTI de um hospital, em um carro estacionado, em uma praça pública ou em uma duna de areia na praia[3]“.

O mais difícil para ela foi aprender como chegar às pessoas, sem ser mal interpretada ou confundida com os atores que fazem ‘pegadinhas’ em programas de televisão, e sabendo ainda que a pessoa pode não querer receber a entrega. Coisa rara, mas que já aconteceu. “Estou muito exposta. Porém o que é o mais difícil desse trabalho é também o mais legal. Em apenas cinco minutos de performance se trava uma intimidade que não se daria de outra maneira.” – revela. A ausência de personagem ou caracterização cênica e o próprio ato de entregar colaboram para criar em tão rápido encontro um sentimento de cumplicidade imediato, expresso das mais variadas formas. “Alguns se emocionam, outros querem dançar junto comigo, muitos analisam a obra, querem debater os problemas dos artistas, conversar… Cada um reage à sua maneira” – comenta Cláudia. Estas reações instigaram a artista a pensar em um desdobramento do projeto que pudesse mostrar um pouco do que encontros com a realidade da dança contemporânea podem provocar em qualquer pessoa, independente da profissão, nível de escolaridade ou grau de contato com a arte contemporânea. E assim surgiu em 2007 a videodança ‘Fora de Campo’, uma das cinco produções selecionadas e financiadas pelo edital Rumos Dança, do Itaú Cultural.

Ao tirar a dança do seu espaço convencional, o teatro; sair do formato habitual, o espetáculo; e invadir o cotidiano das pessoas, Cláudia Müller inevitavelmente acaba criando sim uma aproximação com o público. E ao oferecer sua proposta de dança contemporânea pode tornar-se a informação que faltava, pode virar o elemento conector, uma identificação que ajuda “o espectador de primeira viagem” a reconhecer a dança contemporânea. A partir daí, talvez, o estranhamento não seja tanto. É certo que o artista não precisa da aprovação de ninguém para criar, e que compor uma obra coreográfica pensando em agradar determinado grupo ou o público em geral pode levar à reprodução dos mesmos modelos e o que é pior, dos mesmos pensamentos de dança. Isso não quer dizer que o criador não se importe com o público, apenas entende que nem todos vão se interessar pela sua obra, mesmo que ele siga as tais tendências da vanguarda contemporânea. Como não existem critérios fixos ou limites para classificar uma obra na extensa gaveta da dança contemporânea, seguir quaisquer moldes que as tendências apontem poderá resultar em uma receita falida. Para chamar atenção para as questões que quer expor no seu trabalho o artista vai precisar lançar mão de estratégias. Estratégias de mercado como o esquema delivery escolhido por Cláudia Müller é apenas um desses caminhos que a arte contemporânea oferece. Muitos outros estão à espera que a curiosidade investigativa nata dos criadores vença o desejo de classificar e definir limites.


[1] Trecho do texto “O retrato do artista enquanto um trabalhador”, de Dieter Lesage.[2] Em janeiro de 2008, Cláudia Muller fez entregas em Recife, durante o XIV Janeiro de Grandes Espetáculos, festival de teatro e dança. Em fevereiro volta à Espanha, desta vez para fazer entregas em Barcelona.[3] Todas as situações citadas referem-se a entregas que ela realizou em 2007 em vários locais.