O engenheiro que virou maçã / Foto: João Meirelles

Particip-ação passiva para percurso coletivo

Em meados do mês de julho, encerrou-se uma nova temporada de O engenheiro que virou maçã (2009), do Coletivo Construções Compartilhadas. Numa espécie de sala de estar fragmentada, uma relação comum de convivência é instaurada entre as pessoas (no máximo 30 de uma vez), desde onde relevos de acontecimentos vão se dando de maneira acidentada, do mais sutil ao mais vibracional.

Uma espécie de grafismo desse coletivo com viventes vai sendo o desenho do tempo no espaço da sala, ora evidenciando, ora confundindo quem dali é intérprete e quem dali é público. É primeiro nessa mobilidade de função, que nasce a questão da interatividade na obra. Pelo simples fato da obra estar configurada como esse espaço comum de pessoas estarem (sala de estar) unido à condição performática dos intérpretes (um corpo em espera, batizado de stand-by) que já se opera uma interatividade p_a_s_s_i_v_a e p_a_r_t_i_c_i_p_a_n_t_e_______________ eis uma interrogação!

… entremos aí:

numa certa tradição, o lugar do público na relação com a obra de arte é de fruição. Esse fenômeno cognitivo implica numa experiência de contemplação, a qual coloca a pessoa em condição apassivada diante daquilo que, sim, deve agir: a obra/o artista. Opera-se assim, não apenas uma condição estanque de passivo-público e ativo-obra/artista, mas uma marca de periferia (público) e centro (obra/artista).

… ok!

uma outra certa já tradição também, um tanto mais nova, vinda do século XX, age no sentido de redimensionar esse campo de forças, gerando situações as quais apontam para uma inclusão do público à obra, de jeitos diferentes:

a)     polissemia da obra ou o sentido aberto: convida o público a co-criar os sentidos da obra;

b)     rompimento da quarta parede: soluções cênicas as quais apontam o ato cênico em direção ao público (um dizer, um olhar, um convite específico…) ou ainda inclui no ato cênico algo que emergiu do público (como um celular que toca na plateia e o ator, desde o texto que está dando, comenta o barulho);

c)      configuração do espaço cênico in and out: quando dentro de alocações, o público estando num plano comum à cena, em contraste com o plano descontínuo do palco italiano e a plateia (como em galerias, ou mesmo em salas multiuso ou locações específicas, do tipo casas e galpões abandonados); e quando fora, ou melhor, ocupando espaços públicos, que pela própria natureza (inclusive apontada pelo nome) implica já o lugar de ação do público.

d)     Convite à interação: situações em que a cena e/ou o objeto artístico, para funcionar, implica a participação ativa do público (como interações com dispositivos tecnológicos, deslocamentos espaciais em espaços cênicos amplos, desempenho de tarefa cênica proposta pelo artista…)

Esses jeitos, sobretudo, emparelham participação e atividade, não à toa ter ação dentro de participação.

: Então, na primeira tradição, não-participação do público e público passivo, e na segunda tradição, participação do público e público ativo.

…ok!

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Uma espécie de zeitgeist contemporâneo [na política, na cultura, na arte, na epistemologia…], tem creditado valor na prática democrática,

um público particip-ativo,

(tipo aquele da tradição do séc.XX)

o que implica não só na tomada de posição enquanto fazer dizer a voz, como também, ao considerar a diversidade de interesses e identificações, reconhecer que há uma polifonia ou multivocalidade dizente:

BARULHEIRA                   BARULHEIRA             BARULHEIRA             BARULHEIRA

BARULHEIRA             BARULHEIRA             BARULHEIRA

BARULHEIRA                   BARULHEIRA             BARULHEIRA             BARULHEIRA

BARULHEIRA             BARULHEIRA             BARULHEIRA

BARULHEIRA                   BARULHEIRA             BARULHEIRA             BARULHEIRA

O problema desse barulho é a auto-sabotagem: ao se fazer o espaço da inclusão das vozes, as próprias vozes, barulhentas

a) deturpam a qualidade da comunicação, desafiando a vivência daquilo que é tão caro ao próprio exercício democrático: a negociação no âmbito da comunidade;

b) comprometem a qualidade da fruição, digo fruição, porque somos de arte, poderia dizer escuta. Afinal, se há vozes que dizem, há de existirem ouvidos que escutem para que o exercício democrático na construção coletiva faça percurso boca-ouvido – boca-ouvido – boca-ouvido – boca-ouvido – boca-ouvido –…, desviando-se de entraves empacantes.

… entremos aí:

alguma coisa sobre essa outra posição, complementar à VOZ, a ESCUTA, ou o STAND-BY da obra citada, remete-me a um fenômeno cognitivo chamado époch`e. Na descrição do biólogo e filósofo chileno Francisco Varella e colaboradores, a époch`e­ é uma tomada de consciência a qual implica numa reversão da atenção. Ocorre uma alteração de seu funcionamento natural de ligação com o espetáculo do mundo, sendo então

a) suspensa,

b) revertida do exterior para o interior e, por fim,

c) passaria de um ato de “ir buscar” para outro de “deixar vir”, “deixar revelar-se”

__________ alguém que medita sabe muito bem como isso funciona.

T

O

D

A

V

I

A

O caráter inabitual e mesmo contranatural dessa reversão da atenção, dadas as resistências e dificuldades de operá-las, pede treinamento.

Se um poder da cultura está justamente na formalização de artefatos capazes de serem partilhados pela via do treinamento [.. e a arte é especialista nisso], parece que nesse zeitgeist contemporâneo, a possibilidade de fazer percurso (boca-ouvido) é diretamente dependente do uso de treinamentos similares a époch`e. A presença de uma consciência panorâmica e uma maior receptividade vivida como mais aberta e pacífica, características dessa experiência, é capaz de diminuir os prejuízos do BcjxfAmjcx .Rmhn .Usjkf.L.kscbdf H,scf shO dizente-multivocal. O percurso boca-ouvido investe na fertilização do campo de resoluções uma vez que o “deixar revelar-se” é justamente a emergência e a creditação do insight: lá onde algo pode ser criativo.

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Isso me fez lembrar do último Seminário de Economia da Dança, que tivemos em Salvador, em 2010, promovido pela Plataforma Internacional de Dança. A certa altura, aparece uma fala[não vou lembrar exatamente as palavras]: toda vez a gente vem aqui, faz o levantamento das realidades, das dificuldades, mas parece que está do mesmo jeito.

M

E

S

M

I

C

E

A mesmice, uma espécie de redundância ou ainda, a sensação de mesmice, diante da impossibilidade de perceber as diferenças sutis que estão se pondo, ambas podem ser alteradas na medida em que esse outro estado cognitivo seja possível.

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E eu ainda reescreveria essa fala, desse seminário, por:

a gente chama tantas pessoas para falar, tantas vozes numa diversidade de origens latino-americanas e parece que não fazemos percurso”.

Talvez a questão seja:

E QUANTAS PESSOAS NÓS CHAMAMOS PARA ESCUTAR

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?

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Seria isso uma FUNÇÃO? Gente em stand-by. Algo da produtividade que implica no deixar-vir, no deixar revelar-se, ainda que se mantendo em relação ao espetáculo do mundo, em seus dizeres, escutando-o. Ser presente como um público seleto, diferente das tradições, um público fora da tradição, nem é o não-participante passivo, nem o participante ativo, mas um terceiro, o passivamente participante, cuja ação irrompe da escuta e não de um querer-dizer.

?

Esse texto teve a colaboração com intervenção crítica de Líria Morays (Artista da Dança e Doutorando em Artes Cênicas – PPGAC-UFBA).

Legenda da foto: Rita Aquino e Líria Morays em grito mudo – cena de O engenheiro que virou maçã. Foto de João Meirelles.

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