Politicidade: no corpo, na dança | Politics: in the body, in dance
Na 13a. Edição, com direção artística de Lia Rodrigues e curadoria de Nayse Lopez e Eduardo Bonito, O Panorama Rioarte de Dança trouxe algo de muito especial no percurso do festival: a possibilidade de novos olhares, tanto na programação a cargo dos curadores, quanto na coordenação dos Novíssimos, que ficou por conta de Beatriz Cerbino. Um novo olhar não significa somente trazer novas possibilidades, mas também oferecer a chance reconhecermos aquilo que foi estabelecido pelos 12 anos do festival. Seja no exercício das parcerias ou no olhar para novos criadores, o Panorama mostra uma preocupação política diante da dança contemporânea feita no Brasil e no exterior.
É necessário lembrar que este ano a verba foi reduzida pela metade. A permanência de um incentivo público para a realização do evento significa um engajamento, um compromisso. Isso se estende para população, que tem acesso aos espetáculos e a uma reflexão séria e consistente na dança e, claro, aos profissionais. Trata-se de um percurso de identidade da história, cultura e de uma política de se fazer dança no Rio e no país. O significado do corte vai alem dos números, e é sempre bom lembrar da importância de um compromisso público.
Neste ano, as parcerias aumentaram. A lição é de colaboração e convergência de interesses das diversas instituições parceiras: Instituto Cervantes, Instituto Goethe, British Council, Itaú Cultural, Consulado Geral da França e SESC Rio. As parcerias tiveram um papel conceitual que foi possibilitar a presença e a co-habitação de várias idéias de dança, vindas de vários lugares. Dois exemplos deste tipo de engajamento são o Itaú Cultural com o Programa Rumos Dança e o British Council. O primeiro esteve presente no Panorama com a Noite Rumos Dança/Panorama. Durante três noites, foram apresentados trabalhos cariocas pré-selecionados no programa que aconteceu início de 2004 em São Paulo. Outra parceria foi o British Council, que já havia promovido a palestra de James Tyson e, agora, trouxe Louis Keidan, diretora do Live Art Development Agency, para falar de Live Art.
Que conseqüências o debate sobre Live Art traz para o pensamento dos artistas lá presentes? As implicações desta oportunidade de troca certamente se replica para a dança e para os artistas interessados em artes vivas e performáticas da cidade do Rio de Janeiro. E ainda, isso pode reverberar em outros artistas no país todo. O debate da contaminação entre estas tendências vem sendo travado entre os coreógrafos e teóricos envolvidos com a questão. Vale dizer que artes performáticas e Live Art são áreas distintas, com pontos em comum, com estudos por vezes diferentes, tanto teoricamente como esteticamente.A Casa Hoffman, Centro de Formação do Movimento, possibilitou a vinda de cinco bolsistas no Teatro Carlos Gomes. Além do fato da Casa Hoffman promover a vinda de coreógrafos de diversos lugares (como o espetáculo de Juan Dominguez, Tous les bons espions sont de mon âge, 2002 ) e de coreógrafos e teóricos brasileiros como Roberto Pereira e Lia Rodrigues, oferece também a oportunidade de delinear um grupo de interesses acerca dos artistas participantes. Isso foi apresentado no evento Da Casa, com os coreógrafos Elisabete Finger, Michelle Moura, Ricardo Marinelli, Andréa Serrato e Cristiane Bouger. Os interesses se dirigiam para um discurso crítico sobre o corpo, para a experimentação de estruturas de apresentação em sessões e salas separadas no Teatro Carlos Gomes e, principalmente, o que da performance dá conta de elaborar corpo, cena e coreografia. Primeiramente, este grupo nos lembra que uma formação não se restringe a aprender movimentos, mas também a entender que implicações políticas o como fazer movimentos traz consigo. Além de autonomia e investigação, a apresentação dos curitibanos da Casa Hoffman ecoa a afirmação que o que está fora do eixo, está, de fato, dentro de uma atuação de pesquisa e engajamento na dança contemporânea no Brasil. Foi de extrema importância o Panorama lembrar que isso ocorre além das fronteiras de São Paulo, Rio de Janeiro e dos coreógrafos europeus.
No viés de questionar as fronteiras do próprio fazer, La Ribot convida 20 não-dançarinos a passarem por uma residência de uma semana acerca do tema dos espontáneos. Junto com seu assistente de direção, Juan Dominguez, e as assistentes Tania Arias Winogradow e Corinne García, La Ribot provoca a cena com a presença dos espontáneos numa sala, por 60 minutos, executando ações simples como rir, simular morrer (cair no chão), mostrar seu número. Isso vai aos poucos montando a cena. O que La Ribot acaba por subverter definitivamente é a função da cena. Ao mesmo tempo que mostra uma ficção, ou seja, o teatro com regras próprias que na realidade é uma grande simulação, mostra também corpos humanos caindo num chão manchado de vermelho. O papel dos espontáneos é uma referência aos invasores de uma tourada. São, por definição, aqueles que invadem a arena, quebram as regras do jogo, roubam a capa do toureiro com uma dose extra de risco. Que regras são estas do teatro? Quem rouba mesmo a cena: aquele que ocupa do lugar de performer ou o olhar do observador? Que risco nós espectadores também um pouco “penetras” corremos ao nos confrontarmos com informação artísticas que podem mudar nossa concepção de coisas aparentemente tão banais?
Foi um festival de encontros e não somente de espetáculos prontos para serem assistidos. Encontro foi, por definição, o que aconteceu na série de performances em sessões continuadas na Beneficência Portuguesa nos primeiros dias do festival, chamado de Encontros Imediatos Lisboa – Rio, que reuniu coreógrafos de Portugal e coreógrafos cariocas.
O Panorama, como em outras edições, traz não somente os espetáculos, mas a reflexão viva de temas da dança. E um deles que se evidenciou intensamente é a relação entre dança, performance e o político em cena. Alguns foram os ícones desta discussão: Hooman Sharifi, Wagner Schwartz, Luiz de Abreu e Cia. Membros de Dança. Vejamos: um iraniano radicado na Noruega, um mineiro, um outro mineiro radicado em São Paulo e um grupo de dança de rua de Niterói. O que há de comum nestes coreógrafos? Primeiro, podemos destacar uma preocupação maior com o discurso político e critico na cena do que com uma estrutura coreográfica que acomode passos de dança. O compromisso é com uma presença cênica que possa exibir o grau de engajamento com o que se tem para dizer. E isso é uma atitude política. Dessa atitude que, de fato, é um dos importantes impulsos dos artistas, o corpo não é símbolo, não representa algo que está fora dele como algo descolado dele. O corpo é o que ele diz, presentifica sua forma de expor questões, que vem sendo, afinal, o mote propulsor de muitos debates em dança contemporânea. O que é isso senão uma das preocupações centrais das artes da performance?
Hooman Sharifi (As if your death was your longest sneeze ever) vem se dedicando a formular em cena uma premissa: arte = política. Isso está presente na relação dançarino/espectador, nas frases lançadas no ar e na dança que está cercando você. Wagner Schwartz (Wagner Ribot Pina Miranda Xavier le Schwartz Transobjeto) parece estar abrindo a história, desconhecida pela maioria dos brasileiros. Qual é realmente o papel que cumpre na história das artes e da postura política dos artistas uma tal de Lygia Clark, um tal de Hélio Oiticia, e uns mais conhecidos, por sinal todos estrangeiros, como Pina Bausch, Xavier le Roy e a própria La Ribot? Que tipo de contaminações estão em jogo? A propósito, Luiz de Abreu (O Samba do Crioulo Doido) faz uma pergunta semelhante, mas diante do corpo negro, que ironicamente, é a carne mais barata do mercado. Sua ousadia é ofuscante e instiga a quem um dia cantou o hino diante da bandeira nacional. A Cia. Membros de Dança (Elemento Bruto e Raio X), coreografada por Taís Vieira e dirigida por Paulo Azevedo, também discute um posicionamento político nacional, mas que derruba as fronteiras entre a dança de rua e a dança contemporânea. Aproximam-se da máxima que deveria ser respeitada: eu só quero fazer meu trabalho, ser considerado um profissional no campo da dança, tão comum a tantos profissionais. Até que ponto a sociedade induz o mesmo preconceito na figura do dançarino num país de fome? O que é ter fome de fazer arte? E ainda não ser reconhecido no seu papel social e político: ser um artista da dança?
Os coreógrafos cariocas encaminham também um debate político entre dança e performance, podendo inclusive confundir um desavisado que se trata efetivamente de dança. Dança esta que se utiliza de recursos performativos que estão num corpo contemporâneo, encarnando-os como códigos. Não são passos de dança, mas podem ser reconhecidos como uma técnica, como uma forma de fazer e pensar a cena. A necessidade de questionar os processos e reconhecer que perguntas rodeiam estes coreógrafos. Já havia sido posto como um exercício pelo teórico francês Christophe Wavelet, na ocasião de um seminário do Panorama do ano passado. Este procedimento marcou esta geração e impulsionou um modo de pensar a pesquisa coreográfica. Tal modo deve estar no singular, porque algo costura estes coreógrafos. Mas não se trata somente de uma forma de fazer, mas de pensar o fazer. Por isso, o que resta, é um compromisso de continuar questionando porque, certamente, estes novos coreógrafos estão abrindo novas possibilidades de criação diferentes. São eles: Micheline Torres com Erosão e conservação do solo, Claudia Muller com Dois do seis de setenta, Gustavo Barros com O Relatório G, Paula ÿguas com Não alimente o animal e Marcela Levi com Massa de sentidos. E ainda, o espetáculo de Cristina Moura, I was born to die.
O Panorama vem sempre lembrar, a cada ano, que é na troca de informação, no debate aberto das tendências e na postura política do festival e de seus participantes que podemos afinar um pouco mais nossa localização na sociedade e nossos interesses. E é disso que trata uma certa politicidade: da forma de reconhecimento das nossas ações no mundo.
*Nirvana Marinho é pesquisadora em dança e uma das coordenadoras do projeto www.idanca.net.The 13th edition of Panorama RioArte de Dança, which featured Lia Rodrigues as artístic director and Nayse Lopez and Eduardo Bonito as curators, offered participants something very special: the possibility of new ways of looking at the program, which is the curators’ responsibility, and the coordination of Novíssimos, which was up to Beatriz Cerbino. A new way of looking at things does not only bring new possibilities, but it also offers participants the chance to recognize that which was established over the 12 years of festival. Whether it be through new partnerships or the view of new creators, Panorama has demonstrated a political concern in relation to the contemporaneous dance developed in Brazil and abroad.
It is important to keep in mind that this year, the funding was cut by half. The permanence of public money granted for the event is an engagement, a commitment. That also goes for the population that has the chance to see the shows, they have the chance to experience a serious and consistent reflection in dance and, of course, they have a chance to see the dance professionals. It is all about a route of history and cultural identity and the politics of dancing in Rio and in Brazil. The meaning of such a cut-back is something that goes beyond numbers. It is always good to bear in mind the importance of a public commitment.
This year we have had more partnerships. The lesson we learned is one of collaboration and convergence of interests of the many partner institutions: Cervantes Institute, Goethe Institute, British Council, Itaú Cultural, the General Consulate of France and SESC Rio. The partnerships had a conceptual role: one of making the presence of many ideas of dance from many places and their cohabitation possible. There are two examples of this kind of commitment: Itaú Cultural, with its Rumos Dança Program, and the British Council. The former was in Panorama with Noite Rumos Dança/Panorama. For three nights, there were presentations of projects from Rio that had been previously selected in a program that took place at the beginning of this year in São Paulo. The latter had already promoted a lecture given by James Tyson and now has brought the director of Live Art Development Agency, Louis Keidan, to talk about Live Art.
What effect does the debate of Live Art have on the minds of the artists present there? The consequences of this exchange opportunity certainly go back to the dance and the artists interested in the live and performed art in Rio de Janeiro. That can also be reflected in other artists all over the country. The debate on the contamination of these trends has been going on among the choreographers and the theorists involved. It’s worth mentioning that Live Art and performed arts are two different areas with things in common, they have studies that are sometimes different as much theoretically as aesthetically.
Casa Hoffman, which is the Center where the Movement was created, brought five scholarship holders to Carlos Gomes Theater. Casa Hoffman has been bringing choreographers from many places (such as in Juan Dominguez’ performance, Tous les bons espions sont de mon âge, 2002 ) and Brazilian choreographers and theorists such as Roberto Pereira and Lia Rodrigues. It also offers the chance of creating an interest category around the artists and participants. That was presented in Da Casa, with the choreographers Elisabete Finger, Michelle Moura, Ricardo Marinelli, Andréa Serrato and Cristiane Bouger. The interests focused on a critical discussion over the body, over the experiment of presentation structures in sessions and separated rooms of Carlos Gomes Theater. But mainly, it focused on how the presentation can work and elaborate body, scene and choreography. First of all, this group reminds us that a formation should not only restrict itself to learning movements, but also to understand what political implications there are, the how to make movements. The presentation of the group from Curitiba at Casa Hoffman was a demonstration of autonomy and investigation, but it also echoes the statement that what is out of order is, in fact, inside a research Project and the engagement of the contemporaneous dance in Brazil. It was extremely important that Panorama brought up the fact that this occurs beyond the frontiers of São Paulo, Rio de Janeiro and the European choreographers.
As a way of questioning the frontiers of creation, La Ribot invites 20 non-dancers to spend a week of resident time studying the espontáneos theme. La Ribot works with his assistant director, Juan Dominguez, with Tania Arias Winogradow and Corinne García. He makes the scene with the presence of the espontáneos in a room for 60 minutes. There, she present simple actions, such as laughing, pretending to die (falling on the floor), she shows her number. That amounts to the scene little by little. What La Ribot has totally changed is the function of the scene. At the same time that she shows fiction, that is, the theater with its own rules and is, in fact, a big simulation, she also shows human bodies falling on a red-stained floor. The espontáneos role is a reference to the invaders of a bull fight. By definition, they are those who invade the arena, break the rules, steal the toreador’s cape with an extra twist of danger. What are the rules of the theater? Who steals the scene: the performer or the spectator? What kind of risk do we, spectators, also party-crashers, run when we face artistic information that can change our way of seeing apparently trivial things?
It was a festival full of meetings, not only of performances ready to be seen. The meeting that happened in the series of performances in continuous sessions at Beneficência Portuguesa on the very first days of the festival was called Encontros Imediatos- Lisboa Rio, which gathered choreographers from Portugal and Rio.
Panorama, as in other editions, brings not only performances but also the live reflection of dance themes. One of those themes that caught people’s attention was the relation between dance, performance and politics on stage. The icons of this discussion: Hooman Sharifi, Wagner Schwartz, Luiz de Abreu & Cia. Dance members. Let’s see: an Iranian who lives in Norway, a person from Minas, another person from Minas who lives in São Paulo and a group of street dance from Niterói. What do these choreographers have in common? First of all, we can see that there is a greater worry about the political and critical speech on stage than about a structure of the choreography that has some dance steps fit into it. There is the need to commit to a scene that can show the level of engagement to what one has to say. That is a political action. In fact, this action is one of the important impulses of the artists: the body is not a symbol, it does not represent something which is outside it, something detached from it. The body is what it says to be. It makes its way of proposing questions present. Questions that have turned out to be the propelant topic to many debates on contemporaneous dance. What is this, if not the main goal of the performing arts?
Hooman Sharifi (As if your death was your longest sneeze ever) has put lots of dedication on creating a premise on stage: art = politics. This can be seen in the dancer/spectator relationship, in the loose sentences and the surrounding dance. Wagner Schwartz (Wagner Ribot Pina Miranda Xavier le Schwartz Transobjeto) seems to be opening the history which is so unknown by most Brazilians. What is the real role in the history of parts and political attitude that artists such as some woman called Lygia Clark, a so called Hélio Oiticia, and some other names of foreign people one has never heard of, such as Pina Bausch, Xavier le Roy and La Ribot herself? What kind of contamination is at stake? In fact, Luiz de Abreu (O Samba do Crioulo Doido (Samba of the Crazy Black Man)) proposes a similar questioning in relation to the black body which is, ironically, the cheapest meat in the market. He is incredibly daring and instigating, especially for those who once sang the National Anthem, eyes resting on the Brazilian flag. The Cia. Dance members (Elemento Bruto and Raio X), choreographed by Taís Vieira and directed by Paulo Azevedo also discusses a national political positioning, but it also breaks the barriers between street dance and contemporaneous dance. They approach a machinery that should be respected: the I-just-want-to-do-my-job. I-want-to-be-considered-a-professional attitude in the dance area, which is so common to so many people. How prejudiced can society be in relation to dance in a country stricken by hunger? What does it mean? This hunger for art? And yet, not to be recognized when playing a socio-political role: to be a dance artist?
The choreographers from Rio have also proposed a political debate between dance and performance. It might also lead someone into thinking it that it is only about dance. Such dance makes use of performance devices which are in a contemporaneous body, and faces them as codes. They are not dance steps, but they can be seen as a technique, as another way of doing the scene and thinking about it. There is the need of questioning the processes and recognizing the questions surrounding these choreographers. On the last year edition of Panorama, the French theorist had already suggested this kind of attitude as an exercise. This procedure was a milestone for this generation and stimulated another way of thinking about the research of choreography. Such a way must be singular, because there is something that sews these choreographers together. However, it is not only a matter of doing something, but also of thinking about the doing in itself. That is why what is left is the commitment of continuous questioning, because certainly these new choreographers are opening new and different certain possibilities. They are: Micheline Torres in Erosão e conservação do solo (The eroding and preservation of soil) , Claudia Muller in Dois do seis de setenta (The second of June, 1970), Gustavo Barros in O Relatório G (The G Report), and Marcela Levi in Massa de sentidos (Dough of senses). And finally Cristina Moura’s presentation: I was born to die.
What Panorama is trying to tell us every year is that we have to exchange information, discuss trends, see the political positioning of the festival and its participants. Only then can we pinpoint where we are in society and what our interests are. And that’s what being political is about: the way we see our actions in the world.
* Nirvana Marinho is a dance researcher and one of the coordinators of www.idanca.net.