Quando o popular e o contemporâneo se encontram

Diz-se das formigas que elas formam uma das sociedades mais organizadas do reino animal. Elas são avançadas no que diz respeito à divisão do trabalho e à comunicação, entre outros aspectos, o que as aproxima da estrutura da sociedade humana. E foi justamente essa proximidade que inspirou a curiosidade e a pesquisa dos bailarinos, coreógrafos e pesquisadores Ângelo Madureira e Ana Catarina Vieira para o novo espetáculo: O Nome Científico da Formiga (leia mais aqui).

“O trabalho parte de perguntas que surgiram em Clandestino (2006), nosso último trabalho. Um dia, num bate-papo após uma apresentação, uma pessoa nos perguntou por que fazíamos movimentos tão pequenos. Foi ali que nasceu a nossa idéia de estudar o movimento das formigas e buscar novas referências neles”, lembra Ângelo.

A partir daí, a dupla de artistas mergulhou de verdade no universo dos pequenos insetos, buscando entender a lógica do trabalho coletivo executado por eles. E descobriram muitas semelhanças com a sociedade humana e, mais especificamente, com o trabalho desenvolvido por eles. “Da mesma forma que elas seguem uma trilha quando se deslocam, percebi que nossa pesquisa faz o mesmo: nosso trabalho segue rastros, colagens. Partimos de uma questão surgida antes para seguir nossa pesquisa”, compara.

A própria estrutura do espetáculo recebeu influência dos estudos sobre coletivo realizados pela dupla. Pela primeira vez eles trabalham com uma equipe nos moldes tradicionais, com cenógrafo e figurinista, por exemplo. A direção está nas mãos de Fernando Faro, que faz sua estréia à frente de uma obra coreográfica.

A pesquisa começou quando, no estúdio da dupla, em São Paulo, eles separaram cerca de 1.800 fotos de espetáculos anteriores. Isso ajudou Ângelo e Ana Catarina na composição de movimentos, sempre levando em conta o que havia sido criado antes. Onde eles sentiam a falta de um movimento, era ali que concentravam o trabalho. A pesquisa já se estendeu tanto que O Nome Científico da Formiga já tem uma próxima etapa, que se chamará O animal mais forte do mundo próximo. “Nosso trabalho sempre surge de uma indagação. Estabelecemos uma pergunta e daí temos as idéias. Não pretendemos encontrar uma única resposta, e sim, algumas respostas e várias outras perguntas”, explica Ângelo.

E foi justamente a busca por respostas às inquietações que levou a Ângelo e Ana Catarina à mescla de contemporâneo e popular que está fortemente presente no trabalho deles atualmente. Ângelo é filho de André Madureira, um dos fundadores do Balé Popular do Recife, que está comemorando 30 anos em 2008. Ele começou a dançar aos três anos e, aos sete, já era solista do Balé. Já Ana Catarina teve formação clássica. Em 2000, já em São Paulo, eles abriram a Escola Brasílica Música e Dança, onde ensinavam as bases da Brasílica, linguagem criada em 1976 por André Madureira com base no resgate de manifestações artísticas pernambucanas. “Naquela época eu não tinha interesse pela dança contemporânea. Mas em São Paulo não havia espaço onde dançar, era um outro ambiente, outro clima. A cidade nos aproximou da dança contemporânea, nos contaminou, nos fez ter vontade de misturar o popular com outras formas de dança. Daí começamos a experimentar outras manifestações para trabalhar o corpo e encontrar símbolos para dizer outras coisas. Não estávamos dando conta só com a dança popular”, explica Ângelo que, no entanto, nunca abandonou suas raízes no frevo.

A aposta no novo caminho deu certo. Tão certo que a dupla ganhou em 2007 o Prêmio APCA na categoria Percurso da Pesquisa. Em 2003, eles já haviam recebido o Prêmio APCA de revelação pela pesquisa de linguagem. “É um reconhecimento do nosso percurso de pesquisa. Às vezes você está tão no seu mundo, concentrado no que está fazendo, que não sabe se está fazendo certo. O prêmio legitima, dá força ao que nós estamos fazendo”, comemora o bailarino.

Em setembro, Ângelo e Ana Catarina seguem para Croácia e Bósnia, onde apresentarão os trabalhos Clandestino, Como?, Outras Formas e Somtir (assista a um trecho do espetáculo abaixo), além do projeto A Casa do Outro, em que eles levam um trabalho, literamente, para a casa de alguma pessoa. A idéia do projeto surgiu da necessidade de mais espaços para mostrar as criações, questão que será abordada nos festivais da Croácia e da Bósnia. “Eles estão sofrendo muito com a falta não só de espaço para o artista dançar, como também para pensar. Não há políticas públicas naquela região. Vai ser uma troca muito rica”, acredita Ângelo.

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Apesar do casamento com a dança contemporânea, a admiração e a paixão pelas danças populares de Pernambuco continuam muito presentes. O desafio é justamente mesclar as duas formas de dança, gerando uma terceira. “Quando vamos ao Recife, aprendemos com eles e eles com gente. Uma nova proposta não deve matar outra, elas se ajudam”, afirma o bailarino. “Um dia perguntei ao meu pai o que ele achava do meu trabalho e ele disse que vê como um complemento, que é um trabalho importante. Acredito que, hoje, o importante é a organização das idéias, a mensagem que queremos passar, os materiais com o qual fazemos isso não é mais tão importante. O frevo se configurou da mistura de outros elementos e a dança contemporânea também. Mesmo convivendo com a dança contemporânea, o frevo se fortalece. Tem que haver essa multiplicidade de gêneros”, completa. É um desenvolvimento contínuo, mais ou menos como um trabalho de formiga.