Que corpo está em pausa? | What body is in pause?

Relíquias, semióforo, objetos históricos: seus compromissos são essencialmente com o presente, pois é no presente que eles são produzidos ou reproduzidos como categoria de objeto e às necessidades do presente que eles respondem.[1]

A performance Do Traço ao Gesto – Corpo e Movimento em Murillo La Greca, de Maria Acselrad, com música de Gustavo Vilar e Cláudio da Rabeca, participou do encerramento da exposição Paradoxos Brasil, nos dias 27 e 28 de maio, no Itaú Cultural. O trabalho foi originalmente concebido como parte integrante de exposição homônima, realizada de 23 de março a 21 de abril deste ano, no Museu Murillo La Greca, no Recife (Pernambuco).

A criação parte de 30 trabalhos do artista plástico pernambucano Murillo La Greca, entre desenhos e estudos de desenho, todos acerca do corpo humano. Não se trata simplesmente de uma transposição do ícone imóvel para uma corporeidade dançante. Embora Maria use estratégias de costurar trajetórias entre uma e outra postura inspirada pelos corpos originalmente em pausa nos desenhos, seu trabalho lança questões que nos fazem tirar o melhor proveito do que um exercício de tradução intersemiótica pode oferecer.

A primeira dessas questões é a de que uma obra de arte é irredutível à outra. Existe uma corporeidade na dança ou na performance, mas também existe uma própria ao desenho, para além dos corpos representados. Os traços abrigam vestígios dos movimentos do artista e do processo de criação (esses vestígios ficam ainda mais claros nos croquis), e cada técnica utilizada (carvão, grafite, cartone, esferográfica, pastel) sugere qualidades de movimento próprias. Essa irredutibilidade das obras de arte é posta em evidência no momento em que a intérprete contorna a carvão o próprio corpo numa parede, fazendo com que as duas corporeidades (a do traço e a do movimento) cheguem a se tocar, mas não se fundam. As perguntas da performance coreográfica passam, então, a ser diferentes e, neste caso, certamente mais instigadoras do que as das obras originais.

Michel Bernard, em De la création choréographique, diz que a criação coreográfica a partir da percepção de uma imagem nos conduz a alguns questionamentos: por exemplo, qual a particularidade do olhar do coreógrafo ou do criador-intérprete sobre a imagem? Como se dá a passagem de uma forma visível aparentemente estável e puramente espacial para uma outra, temporal e fugaz? A natureza particular desse olhar consiste em sua pré-disposição a enxergar a iminência das qualidades de esforço nos gestos em pausa [2] . A passagem de um sistema de signos a outro pode dar resultados muito diferentes entre si, mas certamente parte da identificação dos movimentos que estão latentes. A partir disso, a obra coreográfica pode contestar ou reafirmar seu substrato de criação: esse corpo e suas qualidades de movimento.

Em Do traço ao gesto, a via de acesso da criação de um discurso do (e sobre o) corpo é a obra de Murillo la Greca, mas Maria Acselrad ganha em autonomia ao construir uma fisicalidade que não se limita a reproduzir as representações do corpo feitas pelo artista plástico, mas que se relaciona reflexivamente com um referente que é externo às duas obras: o corpo. Isso significa dizer, neste caso em especial, que a performance não corrobora, e sim indaga, aquilo que Hubert Godard diz serem as “mitologias do corpo”, tanto as vigentes nos dias de hoje, como as que estão implícitas nos corpos representados em Murillo la Greca.

Daqui já podemos voltar e dizer por que o trabalho dá o melhor do que se pode esperar de uma tradução entre sistemas semióticos: porque estabelece uma relação política, tanto com a obra revisitada, quanto com o mundo externo que lhe é referente. Os corpos que estão em pausa nos desenhos já não são os mesmos a que Maria restitui os movimentos, e isto acontece justamente por que nestes o que é predominante é a instabilidade, a incerteza, a pergunta. Os corpos a que Do traço ao gesto se refere não reafirmam as representações cotidianas de gestuais ou, mais amplamente, de um ethos, que define papéis sociais, que naturaliza estereótipos. Ao contrário, partindo de representações corporais dos desenhos de Murillo la Greca, Maria Acselrad lança mão de uma visão histórica que trata o passado como reminiscência e o lê a partir de um olhar crítico do presente, perspectiva que se afina com o conceito benjaminiano de história. Seu olhar sobre o acervo Murillo la Greca a move, não pela mera transposição do estático para o dançante, mas por aproveitar para que os objetos (desenhos, pintura, etc.) estejam a serviço de questões do presente. Aos significados dos corpos representados, Maria acresce os de instabilidade, dúvida, movimento, tirando-os de pausa, da condição de artefato ou de monumento.

Notas:

[1] Ulpiano T. Bezerra Meneses. Memória e cultura material: documentos pessoais no espaço público. Estudos Históricos. São Paulo, v. 11 n. 21, 1998, p. 89-103.

[2] Sobre este assunto Cf. Soraia Maria Silva. Profetas em movimento: dansintersemiotização ou metáfora cênica dos profetas do Aleijadinho utilizando o método Laban. São Paulo: Edusp, 2001.

Relics, semióforo, historical objects: its commitments are essentially with the present, therefore it is in the present when they are produced or reproduced as object category and to the necessities of the present that they answer. [1]

The performance From Trace to Gesture – Body and Movement in Murillo La Greca, by Maria Acselrad, with music by Gustavo Vilar and Cláudio da Rabeca, participated of the closing of the exhibition Paradoxos Brazil, 27 – 28 May, at Itaú Cultural. The work was originally conceived as part of the same name exhibition, from 23th March to 21th April 2006, in Murillo La Greca Museum, Recife (Pernambuco).

The creation departs from the 30 years of works from visual artist Murillo La Greca, among drawings and studies, all concerning the human body. It is not simply about a transposition of the immovable icon into a danciang corporality. Although Maria uses the strategies of sewing trajectories between one and another position inspired by bodies originally in pause in the drawings, her work launches questions that make us take best advantage from an exercise of intersemiotic translation.

The first one of these questions is that an art work is irreducible to the other. The corporality in dance or performance exists, but also a proper one to the drawing exists, beyond the represented bodies. The traces shelter vestiges of the artist movements and the process of creation (these vestiges are still more clear in croquises), and each technique used (coal, graphite, carton, roller pen, crayon) suggests proper qualities of movement. This irreducibility of art works is evidenced the moment the interpreter skirtes the proper body with coal in a wall, making the two corporalities (trace’s and movement’s) come close to touch themselves, but they are not melted. The questions of the choreographic performance then become different and, in this case, certainly more instigating than the original work.

Michel Bernard, in De la création choréographique, says the choreographic creation from the perception of an image leads us to some questions: for example, what the particularity of the choreographer’s look or the creator-interpreter’s on the image? How does the passage from an apparently steady and purely space visible form to one other, secular and fleeting, happens? The particular nature of this look consists of its predisposition to see the imminence of the qualities of effort in gestures in pause [2]. The passage of a system of signs to another can give very different results between themselves, but certainly parts from the identification of the movements are latent. Thus, the choreographic work can contest or reaffirm its substrat of creation: the body and its qualities of movement.

In From Trace to Gesture, the acess for creation of a speech of (and about ) the body is the work of Murillo La Greca, but Maria Acselrad earns in autonomy upon building a physicality that it is not limited to reproduce the representations of the body made by the visual artist, but that is related reflexively with a referring that is external to the two works: the body. This means, in that case in special, that the performance does not corroborate, but inquires, what Hubert Godard says will be the “mythologies of the body”, both the ones in consideration today and the ones implicit in the bodies represented in Murillo La Greca.

From here we already can come back and say why the work gives the best of what we can wait from a translation between semiotic systems: because it establishes a political relation, with both the revisited workmanship as with the external world it refers to. The bodies in pause in the drawings already are not the same that Maria restitutes the movements, and this happens exactly because in these what it is predominant is the instability, the uncertainty, the question. The bodies to which From Trace to Gesture refers do not reaffirm the routine representations of gestures or, more broadly, of an ethos, that defines social papers, that naturalizes stereotypes. On the contrary, starting from corporal representations of the drawings by Murillo La Greca, Maria Acselrad sugests a historical vision that treats the past as reminiscence and reads it from a critic look of the present, perspective that tunes with the benjaminian concept of history. Her look about the collection Murillo La Greca moves her, not by mere transposition of static into dancer, but because it uses the objetcs (drawnings, paintings, etc.) to serve present questions. To the meanings of the represented bodies, Maria adds instability, doubt, movement, removing them of pause, of device or monument condition.

Notes:

[1] Ulpiano T. Bezerra Meneses. Memory and material culture: personal documents in the public space. Historical studies. São Paulo, v. 11 n. 21, 1998, p. 89-103.

[2] About this subject Cf. Soraia Maria Silva. Prophets in movement: dansintersemiotização or scenic metaphor of Aleijadinho’s prophets utilizing the Laban method. São Paulo: Edusp, 2001.