Sobre corpo e independência

Independente, segundo os dicionários, é algo livre, autônomo, que não depende… Ao transferirmos a definição para o universo das artes, ela ganha algumas particularidades. Costumamos chamar de independente o trabalho de um artista que não está vinculado a nenhum grupo ou companhia instituída ou a obra que não contou com nenhuma espécie de incentivo para sua montagem, a não ser o investimento dos próprios artistas. Depois do advento das leis de incentivo à cultura e da proliferação dos editais e prêmios, esta condição, antes corriqueira, passou a ser cada vez mais rara.

Mesmo que seja difícil de crer, o passado nos prova que havia sim muitas produções artísticas antes destes mecanismos serem felizmente instaurados no cenário nacional. Na certa, ganhamos com isso condições de trabalho mais dignas para os artistas, profissionalização e o conseqüente reconhecimento da sociedade, que hoje parece respeitar e colocar o trabalho cultural em patamar de igualdade com outras ocupações profissionais. Avanços concretos por um lado, e uma certa acomodação por outro. No Recife, por exemplo, a chegada do incentivo governamental provocou um certo marasmo na produção no início da década de 90. Os grupos ficavam à espera do resultado dos editais e só produziam se tivessem o tal incentivo, situação que, infelizmente, ainda guia o comportamento de alguns. Mas que sequer faz parte da trajetória de muitos outros, ainda bem.

Contemporânea dos “editais”, a Cia. Etc foi fundada em 2000 pelos bailarinos-coreógrafos Ewertton Nunes, Marcelo Sena e Saulo Uchôa, em Aracaju, Sergipe. Alguns anos depois, Sena e Uchôa mudaram-se para Pernambuco e trouxeram a Etc para o Recife. “A companhia funciona como um espaço de estudo, aprendizado e troca. A nossa proposta é aglutinar bailarinos-criadores e artistas de outras modalidades em intercâmbios criativos que enriqueçam a composição dos espetáculos. Eu acho que a companhia não precisa ter uma “cara”, podemos experimentar novos formatos a cada montagem”- defende Saulo. Apesar de dar o devido valor às leis de incentivo, prêmios e editais de fomento, a Etc. é um das companhias que sempre trilhou o caminho das produções independentes, preservando a liberdade até do formato e da estética coreográfica. Mesmo discordando (neste caso) de Saulo e Marcelo, e acreditando que uma companhia precisa sim ter um perfil de trabalho bem definido, o bailarino e coreógrafo José W. Júnior ouviu as afinidades artísticas que o aproximava dos dois amigos, e decidiu se unir a eles na Etc. O outro vértice deste triângulo de criação, Marcelo Sena, diz que “mesmo sem ter um perfil fixo, os trabalhos da companhia acabam tendo uma ‘cara’, marcas que se reafirmam em cada obra”. E esta independência, esta liberdade, ao que tudo indica, é uma das marcas da Cia. Etc de dança, se é que uma característica tão volátil pode assim ser denominada.

Ainda que o “novo” seja um mito, uma ilusão, e que a gente saiba que nada se cria, tudo se transforma, a nova proposta da Etc. é realmente nova em vários aspectos. Novidades no formato e na utilização do espaço são as primeiras que nos saltam aos olhos. Um espetáculo com horário de visitação (duas horas ininterruptas) em que o público pode entrar e sair na hora que quiser e mais, interferir, interagir com os intérpretes, que, afinal, estão ali tão perto, no mesmo espaço “desierarquizado” que, somente por acaso é um teatro, mas poderia ser qualquer outro lugar fechado. Talvez por timidez, por não saber lidar com essa liberdade, talvez por estar demasiadamente envolvido e curioso com o porvir das cenas, o que acontece é que a maioria do público acaba permanecendo no espetáculo até o final da visitação. E, por isso, se surpreendendo com os vários resultados que a mesma coreografia (Com 20 minutos de duração, a seqüência é repetida seis vezes) pode provocar. O contato direto com o terreno das sensações, aguça os sentidos e os mais desinibidos, encorajados pela escuridão do ambiente, chegam a tocar os corpos “em exposição” dos dois bailarinos, ainda bem que, ao contrário da maior parte dos museus, esta é uma exposição que, resguardados os excessos descabidos, pode ser tocada sim.

Corpo-massa: pele e ossos é o primeiro resultado cênico de uma pesquisa intitulada Pele e Ossos, que vem sendo desenvolvida pela Cia. Etc a partir de uma proposição inicial de José W. Júnior. “A semente desta idéia foi plantada durante a minha estada na Cia. Marianne Isson, em Caen, na França, entre 2001 e 2003. Marianne trabalhava a partir das articulações do corpo, sempre interessada na qualidade dos movimentos. Ela criou até uma metodologia de aula (barra-solo), para sistematizar pedagogicamente sua pesquisa estética. Quando voltei ao Recife, continuei trabalhando com esta metodologia, mas descobri outros elementos “– conta Júnior. Aprofundando o estudo, ele encontrou “os ossos” do corpo humano como objeto de investigação e percebeu que deste lugar era possível desenvolver uma maneira diferente de pensar o corpo. Para a criação do espetáculo foi explorado o conhecimento sobre a estrutura óssea humana e suas particularidades, através das peças que compõem o esqueleto, servindo de ponto de partida para a construção da movimentação. O processo de composição coreográfica do espetáculo começou mais especificamente há um ano, quando Marcelo Sena, Saulo Uchôa e José W. Júnior se juntaram, através da Cia. Etc. para aplicar as pesquisas que Júnior já vinha fazendo. “Na época, aproveitamos o edital do Rumos Dança Itaú Cultural para formular uma proposta de pesquisa prática. Fizemos vários experimentos e selecionamos alguns para enviar. Disso resultou a seleção para participar do Laboratório de Criação, com os orientadores Vera Sala, Marcelo Evelin, Adriana Faria e Paulo Paixão, o que contribuiu bastante para o encaminhamento da pesquisa”, descreve José W. Júnior.

Estudando a anatomia a partir da estrutura óssea, os criadores resolveram ampliar seu campo de investigação quando notaram que a qualidade dos movimentos dos ossos e articulações altera a textura da pele, que a relação triádica pele-movimento-ossos é muito mais indissociável e muito mais consistente do que eles imaginavam. No entanto, no decorrer do processo criativo, acabaram percebendo que ainda não tinham elementos suficientemente profundos para centrar a coreografia exclusivamente na pele e nos ossos. Acrescentaram então Corpo e Massa ao título do espetáculo-exposição. E mais uma vez, pisando o “chão da independência”, decidiram não trabalhar com nenhum tipo de luz cênica. Saulo e Sávio Uchôa criaram uma verdadeira coreografia com lanternas de led’s (luzes direcionais), em constante movimento, que bem poderiam ser o terceiro bailarino do elenco (dançam Marcelo Sena e José W.Júnior). A cada repetição da seqüência coreográfica, um novo cenário se configura, por vezes pelas mãos do próprio Saulo ou com o auxílio de alguns pedestais ou de alguns voluntários do público. Esta dinâmica empresta um charme lúdico à criação e faz crer aos espectadores que eles têm um certo poder de decisão sobre a coreografia, já que escolhem o que iluminar e como. A direção é de José W. Júnior, com assistência de Saulo Uchôa, que chegou a ensaiar o espetáculo, mas acabou desistindo da carreira de bailarino e optando por ficar atuando exclusivamente na criação e nos bastidores da dança.

A afinação e o envolvimento do grupo de criação de Corpo-massa: Pele e Ossos se justifica pelo caráter coletivo da companhia e pelo sistema de cooperação mútua eleito por eles como metodologia, que parece ser mérito da liberdade típica de produções artísticas independentes. O músico Henrique Maia foi o responsável pela trilha e o artista plástico Pedro Buarque assina a direção artística. “Mas todos estão dentro da pesquisa, não encomendamos trilha ou iluminação, todos pesquisaram juntos”- explicam os coreógrafos, Marcelo, Júnior, e Saulo. “Se observarmos a história das artes, vemos logo que os mais valiosos produtos e produções saíram de grupos, de coletivos de criação. Eu acho que cabe ao governo identificar estes viveiros criativos e incentivá-los para que não desapareçam”- completa Marcelo. Este primeiro resultado cênico da pesquisa Pele e Ossos é mais uma produção independente da Etc, porém contou com o apoio do Centro de Formação e Pesquisa das Artes Cênicas Apolo-Hermilo, Prefeitura do Recife, Itaú Cultural e do Movimento Dança Recife.

Marcelo Sena conta que desde a fundação a Cia. Etc sempre manteve este espírito de equipe, uma colaboração que fez com que eles conseguissem realizar vários espetáculos, sem patrocínio ou incentivo. “Produzir sem incentivo é possível, mas manter uma boa equipe de profissionais trabalhando juntos é praticamente impossível senão houver nenhum incentivo financeiro”- desabafa o bailarino. Parece que, pelo menos por algum tempo, felizmente os intérpretes-criadores da Cia. Etc vão conseguir permanecer juntos sim, já que a sua pesquisa prática Pele e Ossos acaba de ser contemplada pelo prêmio Klaus Vianna, da Funarte/Petrobrás.

Financiamentos à parte, nos interessa aqui o que diz Corpo-massa: Pele e Ossos? Que poética pode haver na anatomia de corpos em movimento? Uma proposta coreográfica, no mínimo longe da obviedade, que desperta mais do que nossa curiosidade. O confronto com os corpos “anônimos-universais-ocos-mudos” nos falam muito, ainda que nenhum discurso seja objetivo da pesquisa. Júnior é conciso e categórico: “o espetáculo versa sobre o corpo e só”. Depois de procurarmos em vão narrativas, nexos, conexões, nos deparamos apenas com o efeito espelho, corpos que dançam assim como dança o meu corpo? Será? Será que todo corpo dança? Em alguns momentos, a escrita dos movimentos parece querer afirmar que em um princípio qualquer do humano, a dança era condição intrínseca do corpo, não havia corpos não-dançantes.

Para não correr o risco de desviar o foco, os criadores fizeram algumas escolhas que foram decisivas para o resultado final: artifícios foram suprimidos e os corpos silenciaram todos os outros assuntos para ser o assunto todo. Creio que esta tenha sido a etapa mais difícil da construção pouco-convencional de Corpo-Massa: Pele e Ossos: calar os corpos, sempre tão cheios de histórias, de referências, de informações visíveis, de idéias, de formas, de marcas… Missão cumprida: a mudez dos corpos impressiona e nos liga imediatamente à plasticidade, às formas que ocupam o espaço abrindo várias frestas, e nos oferecendo uma leitura diferente, um espetáculo diferente a cada repetição (se é que podemos chamar de repetição uma seqüência que nunca é igual em um cenário que também não é igual). Talvez estas licenças para experimentar caminhos “estranhos”, se aventurar no desconhecido, sejam grandes trunfos da produção independente. Pelo menos é assim no espetáculo da Cia. Etc.

Sem ousar ser certeza e por mais que não queira ser questionadora nem dizer coisa alguma, a coreografia deixa um rastro de questões inquietantes e ao mesmo tempo comoventes. Perguntas intencionais ou não, que talvez possam ser assim despretensiosamente traduzidas, mais para desabafar do que para filosofar: O que pode haver de belo e emocionante em um corpo “cru” (sem pensamentos ou sentimentos aparentes)? O corpo basta à dança? E a dança, o que é afinal?