Sobre os espetáculos de domingo na Paulista

Avenida Paulista, 149, às 15h, dentro: uma discreta fila de dez pessoas aguarda a liberação de ingressos para o espetáculo A Carga, de Faustin Linyekula, programado como parte da terceira edição da Mostra Internacional de Teatro (MIT/SP), idealizada por Antonio Araújo e Guilherme Marques.

Avenida Paulista, 149, às 15h, fora: uma multidão [1] verde e amarela caminha de um lado para o outro da avenida, gritando palavras como “Fora, Dilma” e carregando cartazes com os dizeres “Bolsonaro para presidente” e “Lula cachaceiro, devolve o meu dinheiro”.

Às 16h, após conversas com a produção da MIT, os ingressos são liberados e o público do teatro se vê livre para buscar outros abrigos até que o espetáculo se inicie. Enquanto isso, na manifestação, um grupo de policiais revista aqueles (homens) que não vestem a camisa da seleção brasileira e que se atreveram a caminhar pela avenida carregando uma mochila.

Apesar do barulho e do pequeno público presente (situação bastante rara em espetáculos do Itaú Cultural), o espetáculo começa pontualmente às 17h enquanto a multidão continua sua manifestação nos arredores. Durante os 55 minutos de apresentação, Linyekula é acompanhado por uma trilha sonora que se mantém insistente em salvar o país da corrupção.

Dentro, o artista congolês compartilha como a hegemonia europeia pode destruir aspectos culturais de seu país. Os livros de filosofia e história contêm muitas narrativas, mas não dão conta de dizer a sua própria história. Com textos, imagens e sua dança, Linyekula é capaz de nos apresentar um corpo que encontra caminhos para legitimar sua vida e sua arte, apesar da invisibilidade de seu país.

Fora do teatro o espetáculo é outro. É uma luta por uma suposta democracia e por um suposto fim da corrupção (somente a dos outros). Entre tantos absurdos, duas situações chamaram muita atenção:

1. O tamanho das filas para comprar o bilhete do metrô. Impressiona saber que uma parcela considerável das pessoas reivindicando ontem por melhores condições para os brasileiros, e que se dizem representantes do povo, raramente usam o transporte público.

2. Em frente ao Itaú Cultural um grupo de oito pessoas, entre enfermeiros e pacientes cadeirantes de uma casa de repouso da região, observavam os manifestantes passarem. Centenas de manifestantes pararam para tirar fotos e ovacionaram a força do idoso que saiu da comodidade da sua casa para lutar pelos direitos do país. Fiquei me perguntando onde estão os velhos das nossas famílias e qual o motivo para não vermos, no dia a dia, essa adoração por pessoas com deficiências. Não me parece que o respeito pelo próximo seja algo tão bem resolvido em nossa cidade, a considerar pelas constantes reclamações de idosos e pessoas com deficiência sobre a falta de respeito às leis que protegem seus direitos.

Enquanto assistia ao espetáculo, ficou clara a diferença na maneira como assuntos complexos estavam sendo tratados no palco e na manifestação. No palco, uma discussão sobre o genocídio negro e sobre nossa incrível capacidade de achar que tudo o que é bom vem da Europa (ou de Miami). Do lado de fora, uma simplificação da violência defendendo que “bandido bom é bandido morto”. Ao que parece, nos resta seguir estudando, ouvindo histórias de quem vive de maneiras diferentes e com necessidades diferentes das que nós conhecemos. Nesse momento de ânimos tão aflorados parece que nada (ou ninguém) mais importa, mas apenas a minha vida e meus privilégios.

Lutar por um país melhor não deveria ser um problema, mas é no momento em que o discurso é enfraquecido, pautado por meios de comunicação que não se importam com fatos, dados e a apuração de pelo menos dois lados da notícia. É um problema a partir do momento em que não nos preocupamos mais com quem está caminhando ao nosso lado; o protesto reuniu os preocupados com o valor do dólar, os interessados em designar um herói [2] para o país (no caso o juiz Sérgio Mouro, como escrito em um dos cartazes), os que afirmam que a única salvação é a volta dos militares ao poder, os que querem mais saúde e educação. Tudo isso junto.[3] Infelizmente, ao invés desta diversidade de reivindicações levar a uma discussão mais ampla do que está ocorrendo, o que ficou foi uma simplificação do problema.

Em tempos de tamanha imunização [4] em relação ao outro, parece essencial que a MIT continue apresentando a poética de congoleses, sul-africanos, haitianos no palco. Relacionar essas falas com nosso contexto é sempre um processo difícil, dolorido, mas talvez necessário para percebemos que estamos reproduzindo as mesmas exclusões. A polarização [5] entre coxinhas e petralhas parece uma alternativa frágil diante da complexidade de exclusões apresentadas nos palcos (do teatro e da rua). Neste momento, talvez uma das poucas possibilidades seja dialogar por meio da arte. É uma resistência (pela arte) manter um espetáculo no domingo, 13 de março de 2016, mesmo sabendo que um espetáculo sobre uma violência silenciosa poderia ser abafada pelo grito violento da rua.

 

[1] Segundo o Instituto Datafolha 500 mil pessoas participaram do protesto na Avenida Paulista.

[2] Eliane Brum sobre a eleição entre um culpado e um salvador, em texto publicado no El País.

[3] Para saber mais, sugiro o texto de Tayná Leite intitulado Por que eu continuo não indo para a rua.

[4] Conceito discutido pelo filósofo italiano Roberto Esposito em Immunitas: protección y negación de la vida. (Buenos Aires: Amorrortu, 2005).

[5] Pedro Zambarda de Araújo comenta que enquanto discutimos sobre pessoas (políticos), outras tantas continuam a dormir nas ruas, inclusive na Avenida Paulista.

 

Virgínia Souza é formada em Comunicação das Artes do Corpo pela PUC/SP e em Pedagogia pela USP. É doutoranda em Comunicação e Semiótica (PUC/SP). Autora de O corpo monstruoso – da espetacularização midiática às práticas de resistência.