Tensões entre corpo e metrópole

A queda da mimese individual e do imaginário coletivo

Na parte da cultura contemporânea que flui entre metrópole comunicacional e enredos digitais, está em mudança a relação mimética que tradicionalmente o espectador assumia em relação ao performer (ator ou bailarina). Quando o cinema ainda era o “grande cinema”, o teatro era recitado ou o corpo era movimentado somente dentro de lugares construídos ad hoc, o público contraía projeções profundas e também arcaicas com os atores, cujos perfis eram incorporados através da identificação. Particularmente, entrou em crise aquela espécie de perversa utopia erótica – oscilante – entre Eus e Super-eu – que o performer representava e em direção à qual todo espectador tendia, e que durava além do desfrutar do espetáculo: colada na imaginação do grande público e até mesmo em seus comportamentos mais banais.

Com a afirmação dos meios digitais, esta relação mimética-ritual está alterando-se profundamente. Daí a impossibilidade de utilizar-se o conceito de imaginário coletivo, que agora sobrevive como um náufrago (já problemático na época), para entender a relação audiência/atores do ator. Não há imaginário coletivo, pois desapareceu a função ideal e unificada que cada espectador – enquanto parte de um público homogêneo – absorvia e praticava na vida cotidiana. A extinção desse processo identificador significou o fim da star quase intocável, sobre-humana, divina: e a multiplicação das celebrities. Agora todos podem se identificar com todos, em um jogo de fragmentos de identidades e de espelhos infinitos como o YouTube.

Os eus comunicacionais

Se o espectador contemporâneo não realiza mais aquela relação fantasmagórica que permitia “viver o casamento com o casamento da atriz”, o êxito das TV pós-generalistas antes e de Internet depois, desenvolveu vários comportamentos também entre os membros de uma mesma família: daí a impossibilidade sociológica de individuar objetivos precisos. O que não subsiste mais é a tipologia, já que os fluxos narrativos descentralizam-se e multiplicam-se, aceleram-se e misturam-se. Na mesma noite, o eu-conectivo (e não coletivo) navega na Internet, assiste – na TV paga a um trecho de um filme, brinca de “pequeno irmão”, vive uma aventura em “second life”, faz amizade no “Orkut”, baixa ou compõe música, bate papo com amantes nunca vistos, manda alguns e-mails e finalmente relaxa com um videogame: quer dizer, vive um percurso ao longo do qual assume uma multiplicidade de “eus” que não procuram nem mimeses individuais nem o imaginário coletivo.

Os eus comunicacionais procuram algo mais. Não são as formas fixas, são os fluxos híbridos, os que focalizam um multivíduo que foi espectador (“público”) e que agora pretende ser espectaddor: “os eus” tentam relacionar traços irreproduzíveis dentro da reprodutibilidade. Em outras palavras, a comunicação digital torna irreproduzível a reprodutibilidade técnica. E com essa afirmação, todas as metodologias interpretativas e muitas expressões narrativas (dentre as quais, a coreografia) tornam-se obsoletas.

Dessa forma, “esse” eus singular-plural define um sujeito diaspórico que libera tensões e visões materiais/imateriais pós-dualistas. Seu contexto é a metrópole comunicacional e não mais a cidade industrialista. As novas linguagens ideogramáticas e icônicas desafiam os alfabetos tradicionais e vão além.

Na dificuldade de atingir a audiência, esse fragmento de “ex-público”, tecnologicamente avançado, vive entre constantes instalações performáticas. Seu “eus díspares” não cabe mais nos traços clássicos (ideal do eu, mimese, imaginário coletivo, classe social), mas procura uma crescente transversalidade do ator: deseja performers que atravessem gêneros, estilos, linguagens, disciplinas. Âmbitos tão distintos academicamente, quanto a identidade era única e compacta. O desafio aberto da relação performer/espectaddor – ambos díspares, móveis, descentrados – é em direção ao corpo exposto e alterado. Corpo observado, não tanto como um elemento de perversões ou manipulações, mas sim como um panorama móvel onde as regras de sexualidade, erotismo e pornografia modificaram-se. Corpo desregrado como bodyscape com predisposição não mais dualista (macho/fêmea, público/privado, natureza/cultura), ligado entre tecnologias digitais auráticas e mutações sensíveis espaço-temporais.

Os corpos são híbridos e as culturas sincréticas, pois ambos estão inseridos dentro das tensões comunicacionais digitais, onde a sociedade no sentido histórico dissolve-se. Um tecno-corpo que pratica sua auto-construção e auto-exposição não censurável pelos vários moralismos, nem pelas tradições disciplinares. Uma multi-sensorialidade para eXpectadores diaspóricos, viajantes além da era mimética e em direção às fases das mutações indisciplinadas.

Bodyscape pixelado

As tensões performativas entre corpo e metrópole significam atrações recíprocas entre etnografias e coreografias. Libertar as diásporas antropológicas – não mais presas na reprodução do passado – pode despertar polifonias dissonantes e dançantes. Olhares oblíquos e díspares.

Bodyscape é o corpo como panorama que flutua entre os interstícios da metrópole comunicacional. Ao sufixo –scape acrescenta-se o prefixo body para sublinhar um conceito flutuante de corpo, que se expõe à observação alheia e própria enquanto um panorama denso de fetiches visuais. A elaboração temporária do próprio corpo em bodyscape é uma prática que o performer adota para deslizar entre os espaços intersticiais que a metrópole comunicacional constrói e dissolve em sua indisciplinada flutuação.

O bodyscape atrai e em parte assimila-se a esses espaços intersticiais, às vezes favorece sua mutação ou expressa seus conflitos.

Bodyscape é corpo espacializado.

Bodyscape persegue acelerações de códigos antes invisíveis, incorpora-os através de montagens sucessivas na própria configuração, constrói fisionomias temporárias: utilizáveis ao longo de itinerários corpóreos intersticiais e tecno-sincréticos. Esse bodyscape performático desenvolve coreografias e etnografias fetichistas transformando tudo aquilo que aparece como “objeto” em sujeito. Distinções dualistas que não funcionam mais: as coisas, os seres, os pixels misturam-se constantemente. A irreprodutibilidade é reproduzível.

Seres-coisas pixelados.

Tais seres-coisas deslizam nos interstícios comunicacionais, pretendem se fazer olhos, um se fazer olhar, um multivíduo que se torna coisa-que-vê e que-se-vê , que altera as disposições adquiridas dos olhos, sua extremidade porosa. Eróptica. Uma propagação erótica que penetra nos olhos, perfura-os e os filtra nos interstícios. O olho etnográfico é um se fazer díspare e recíproco ao corpo coreográfico. Ambos – olhos e corpos – são perfurados.

Fendas erópticas. Escrituras dançadas. Ideogramas sônicos…

Interstícios

Os interstícios são zonas que estão entre (in-between) áreas mais ou menos conhecidas, lá inserem-se em setores vazios ou abandonados, como parasitas momentâneos misturando os confins material/imaterial. Eles estão freqüentemente adiantados, no sentido que um interstício pode ser uma abertura que favorece a aplicação em seus contornos de um corpo espacializado denso de atrativos. Tais interstícios podem se cruzar nos encontros metropolitanos ou digitais que mudam processualmente os sistemas perceptivos de um sujeito atento a acolher e re-elaborar os códigos encontrados.

Transfigurar os interstícios em etnografia e em coreografia.

Individuar tais interstícios é tarefa da pesquisa etnográfica e da metamorfose coreográfica aplicadas à metrópole comunicacional. Interstício é parte da experiência metropolitana e digital, é elemento significativo para aqueles sujeitos que – ao invés de uniformizar-se aos lugares ou vagar entre espaços – criam inter-zonas mutantes através de seu deslizar trans-urbano.
Fio sutil e lascivo que se contorce para fluir ao longo de um fora-espaço dissonante: isso é o interstício.

O interstício abandona a cidade industrialista e atravessa a metrópole comunicacional entre sujeitos diaspóricos e sincretismos digitais. Esse estar-entre do interstício favorece a descoberta de enigmáticas fendas: a fenda é a fratura social, o orifício destoado, a cavidade obscena, a convexidade arrogante, a angulação opaca. As fendas oferecem-se a olhares oblíquos e díspares aquilo que ainda é invisível. As fendas abrem corpos e interstícios às corpographias.

Corpographias coreografias etnografias………..