{"id":71,"date":"2003-07-01T00:00:00","date_gmt":"2003-07-01T00:00:00","guid":{"rendered":"http:\/\/beta.idanca.net\/2003\/07\/01\/o-corpo-percebido\/"},"modified":"2008-06-13T18:56:24","modified_gmt":"2008-06-13T21:56:24","slug":"o-corpo-percebido","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/idanca.net\/o-corpo-percebido\/","title":{"rendered":"O corpo percebido"},"content":{"rendered":"

Refletir sobre a dan\u00e7a contempor\u00e2nea em sua multiplicidade de formas \u00e9 exerc\u00edcio complexo que exige a leitura de diferentes teorias, buscando em cada uma delas elementos complementares. Pensadores como Marcel Mauss, Michel Foucault, Maurice de Merleau-Ponty e Pierre L\u00e9vy observaram o corpo e constru\u00edram id\u00e9ias importantes e ao mesmo tempo bastante distintas que podem ajudar a entender as mensagens “das entrelinhas” das dan\u00e7as.<\/p>\n

O corpo \u00e9 elemento fundamental na dan\u00e7a e toda sua hist\u00f3ria cultural, social, biol\u00f3gica se reflete nos movimentos que faz. Movimentos coreografados ou espont\u00e2neos deixam entrever aspectos da cultura na qual est\u00e1 inserido aquele que se move. A forma como um core\u00f3grafo e seu int\u00e9rprete percebem o mundo se apresenta em sua dan\u00e7a.<\/p>\n

O fil\u00f3sofo Maurice de Merleau-Ponty dedicou parte de sua obra a reflex\u00f5es sobre o corpo, o que permite construir pontes em rela\u00e7\u00e3o \u00e0 dan\u00e7a. O fil\u00f3sofo analisou o que chamou de consci\u00eancia perceptiva, complementar \u00e0 consci\u00eancia representativa. Segundo Merleau-Ponty, a percep\u00e7\u00e3o \u00e9 sempre consci\u00eancia perceptiva de alguma coisa e nela n\u00e3o se pode separar o sujeito e o objeto – como fazem as ci\u00eancias naturais e as ci\u00eancias sociais de base positivista. Na percep\u00e7\u00e3o, as decomposi\u00e7\u00f5es anal\u00edticas s\u00e3o precedidas pela imagem do todo. Assim, a percep\u00e7\u00e3o do espet\u00e1culo de dan\u00e7a, por exemplo, seria sempre a percep\u00e7\u00e3o de um todo, composto por movimento, coreografia, espa\u00e7o, tempo, gestual, corpo, bailarino, plat\u00e9ia.<\/p>\n

Em toda percep\u00e7\u00e3o, afirma Merleau-Ponty, tem-se o paradoxo da iman\u00eancia (o imediatamente dado) e da transcend\u00eancia (o al\u00e9m do imediatamente dado). Iman\u00eancia e transcend\u00eancia s\u00e3o os dois elementos principais, estruturais de qualquer ato perceptivo. Assim, o objeto percebido n\u00e3o \u00e9 de todo estranho ao sujeito que o percebe (iman\u00eancia). Por sua vez, toda percep\u00e7\u00e3o de alguma coisa significa uma n\u00e3o-percep\u00e7\u00e3o de algo que est\u00e1 para al\u00e9m do imediatamente dado (transcend\u00eancia). Na realidade, segundo o fil\u00f3sofo, os dois elementos n\u00e3o s\u00e3o mutuamente contradit\u00f3rios, pois toda vez que se tem consci\u00eancia de alguma coisa, est\u00e1 aberta a possibilidade de n\u00e3o-consci\u00eancia de aspectos relacionados \u00e0quele objeto percebido. Assim, retomando o exemplo da dan\u00e7a c\u00eanica contempor\u00e2nea, em um espet\u00e1culo percebe-se algumas coisas enquanto outras deixam de se apreendidas.<\/p>\n

Em Fenomenologia da percep\u00e7\u00e3o<\/em>, o autor explica que considera seu pr\u00f3prio corpo como seu ponto de vista sobre o mundo (1971, p.83). Assim, tem consci\u00eancia de seu corpo atrav\u00e9s do mundo e tem consci\u00eancia do mundo devido a seu corpo (1971, p.95). Mas, a forma como se percebe o mundo e seus fen\u00f4menos tamb\u00e9m est\u00e1 vinculada \u00e0 cultura e \u00e0 sociedade. Dessa forma, a percep\u00e7\u00e3o nunca poderia ser “neutra”, imparcial ou pura. Ela sofre influ\u00eancias, cont\u00e1gios culturais e sociais. Nem a ci\u00eancia estaria livre para entender o corpo de modo neutro: tamb\u00e9m ela \u00e9 pass\u00edvel de interpreta\u00e7\u00e3o e toda interpreta\u00e7\u00e3o parte de um repert\u00f3rio de saberes, de conhecimento, de cultura.<\/p>\n

O fil\u00f3sofo tamb\u00e9m entende que o corpo sintetiza a ambig\u00fcidade (iman\u00eancia\/transcend\u00eancia) do ser no mundo. Para Merleau-Ponty, o corpo \u00e9 forma de express\u00e3o, pleno de intencionalidade e poder de significa\u00e7\u00e3o. Cada movimento, cada gesto produzido \u00e9 tamb\u00e9m pleno de sentidos, portanto, “o sentido dos gestos n\u00e3o \u00e9 dado mas compreendido, quer dizer, retomado por um ato do espectador” (1971, p.195). Assim, o int\u00e9rprete, em um dado espet\u00e1culo, transmite algum sentido atrav\u00e9s de seus movimentos e o espectador, ora na fun\u00e7\u00e3o de receptor, o entende de determinada forma, segundo seu repert\u00f3rio cultural de informa\u00e7\u00f5es. Desse modo, “o gesto est\u00e1 diante de mim como uma pergunta, ele me indica alguns pontos sens\u00edveis do mundo, ele me convida a encontr\u00e1-lo l\u00e1. A comunica\u00e7\u00e3o se completa quando minha conduta encontra neste caminho seu pr\u00f3prio caminho. H\u00e1 confirma\u00e7\u00e3o do outro por mim e de mim pelo outro” (id).<\/p>\n

Natureza e cultura, assim como sujeito e objeto, n\u00e3o podem ser dicotomizados na vis\u00e3o do fil\u00f3sofo. Esse ponto de vista – que se coaduna com o do soci\u00f3logo Marcel Mauss – se reflete em sua vis\u00e3o sobre o corpo. Assim, o corpo n\u00e3o pode ser entendido simplesmente como organismo. Ele tamb\u00e9m \u00e9 cultura, transcendendo o aspecto f\u00edsico: “O uso que um homem far\u00e1 de seu corpo \u00e9 transcendente com respeito a este corpo como ser simplesmente biol\u00f3gico”(1971, p.199). Se o corpo n\u00e3o \u00e9 puramente biol\u00f3gico, os comportamentos dele derivados tamb\u00e9m n\u00e3o podem ser. Comportamentos, s\u00e3o a um s\u00f3 tempo biol\u00f3gicos e culturais. Os movimentos e os gestos, da mesma forma.<\/p>\n

O pensamento de Merleau-Ponty – assim como o de Mauss, que prop\u00f4s o conceito de fato social total – \u00e9 importante para evitar o reducionismo na an\u00e1lise de fen\u00f4menos relacionados ao corpo, heran\u00e7a do olhar positivista do s\u00e9culo XIX. A partir do que escreveu pode-se pensar os movimentos dan\u00e7ados como fruto de experi\u00eancia vivida, percebida, tanto quanto comportamentos, movimentos e gestos de fora da cena. A plat\u00e9ia percebe o espet\u00e1culo, podendo transcender o que \u00e9 apresentado no palco.<\/p>\n

Maurice Merleau-Ponty aprofundou a reflex\u00e3o iniciada pelo fil\u00f3sofo Baruch Spinoza. Em Fenomenologia da percep\u00e7\u00e3o<\/em>, ao estudar o comportamento, mostrou que existe rela\u00e7\u00e3o entre psiquismo e fisiologia em toda conduta humana; analisou o corpo no que tange \u00e0 percep\u00e7\u00e3o ilus\u00f3ria, referindo-se ao “membro fantasma” – mem\u00f3ria residual do uso das partes do corpo, informa\u00e7\u00f5es arquivadas pelo c\u00e9rebro que perduram em um corpo mutilado (caso de pessoas que sentem dores como se ainda tivessem partes j\u00e1 extirpadas de seu corpo).<\/p>\n

A psicologia tamb\u00e9m permitiria compreender esse fen\u00f4meno de forma mais complexa. O corpo n\u00e3o seria apenas um objeto f\u00edsico e sim, “apar\u00eancia” de uma interioridade. Intrinsecamente ligado a esta interioridade, o corpo se transforma em um instrumento com o qual o homem habita o mundo e a ele pertence.<\/p>\n

Do ponto de vista de Merleau-Ponty, consci\u00eancia e corpo s\u00e3o insepar\u00e1veis. Assim, viver seria estar no mundo, refletindo-o e nele se refletindo. A percep\u00e7\u00e3o seria a chave para esse entendimento e a constru\u00e7\u00e3o da realidade. Como a percep\u00e7\u00e3o se d\u00e1 atrav\u00e9s do corpo, este seria, simultaneamente, sujeito e objeto. O fil\u00f3sofo tenta solucionar tal dualidade atrav\u00e9s de uma unidade de abstra\u00e7\u00e3o: o corpo como “coisa pensante” e “objeto pensado” ao mesmo tempo, ou seja, o que pensa e sente e o que se torna objeto de pensamentos. Essa dupla propriedade o coloca na ordem do objeto, de um lado, e na ordem do sujeito, de outro, mas sem dissolv\u00ea-lo, sem desagregar as duas propriedades.<\/p>\n

Assim, a partir dessas reflex\u00f5es pode-se entender que a contribui\u00e7\u00e3o que o pensamento de Merleau-Ponty traz para o universo da dan\u00e7a c\u00eanica contempor\u00e2nea \u00e9, principalmente, a possibilidade de se pensar as artes corporais como espa\u00e7o de express\u00e3o e de constru\u00e7\u00e3o de pensamento – objeto e sujeito de cultura percebido diferentemente por quem cria, quem executa e quem assiste a um espet\u00e1culo. Da\u00ed deriva a riqueza t\u00e3o grande da arte de dan\u00e7ar e criar dan\u00e7a.<\/p>\n

Refer\u00eancias bibliogr\u00e1ficas: <\/strong><\/p>\n

MAUSS, Marcel. As t\u00e9cnicas corporais. In: (_____). Sociologia e antropologia<\/em>. S\u00e3o Paulo: Edusp, 1974a. v. II. p. 209-234.<\/p>\n

_____. Ensaio sobre a d\u00e1diva: forma e raz\u00e3o da troca nas sociedades arcaicas. In: (_____). Sociologia e antropologia<\/em>. S\u00e3o Paulo: Edusp, 1974b. v. II. p. 37-184.<\/p>\n

MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o esp\u00edrito. A d\u00favida de C\u00e9zanne. In: Textos selecionados<\/em>. 2.ed. S\u00e3o Paulo: Abril Cultural, 1984. (Col. Os Pensadores)<\/p>\n

_____. Fenomenologia da percep\u00e7\u00e3o<\/em>. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1971.<\/p>\n

_____. O primado da percep\u00e7\u00e3o e suas conseq\u00fc\u00eancias filos\u00f3ficas<\/em>. Campinas: Papirus, 1990.<\/span><\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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